É necessário resolver as coisas da matéria para cuidar depois das coisas do espírito. As condições materiais da Igreja Católica, que com o tempo se tornaram comprometidas, não lhe permitiria cuidar siquer das coisas da matéria, quanto mais das do espírito, muito menos quando estas, do espírito, necessitam do suporte daquelas, da matéria, afinal não podemos dar sabedoria a quem sente fome. Emaranhada na sua teia de cumplicidades e interesses, a igreja tem perdido cada vez mais seu rumo, um caminho que deveria ser de espiritualidade mais que tudo, tendo as coisas da matéria seu lugar colateral, como deve ser na vida de todos nós, pois que estamos aqui todos em espírito, vivendo uma esperiência na matéria, e esta tem de ser absolutamente secundária, exercendo seu direito de ser atendida em tudo aquilo que representa vida, e nada mais. As outras estâncias passageiras que representam luxo, cobiça, ganância, exagêro, abuso, exorbitância, deveriam ser repudiadas por toda a pessoa consciente de sua transitoriedade.
Muito tenho escrito sobre Francisco, pois, diferentemente dos outros seis papas que conheci em meu tempo de existência ( Que inclui nestes sete papas, um dos mais longos pontificados e um dos mais curtos e uma renúncia, o que certamente muito pouca gente viveu, tudo junto, em seu tempo de vida.) e intitulei o último artigo que escrevi de A derradeira luta de Francisco, o Papa; o que gerou muita incompreenção com a palavra utilizada. Francisco toca-me, diz alguma coisa a este crente, discrente da sociedade, que sou eu. Tenho escrito porque o tema suscita atenção só pelo que descrevi entre parenteses, pois o meu tempo, para o papado, tem sido um tempo conflituoso, esta afirmação mais evidente fica, se lhe juntarmos as 5 ameaças de morte aos papas, uma concretizada, os dois atentados e um escândalo sem precedentes, para não falarmos da triste situação à qual a Igreja chegou como imensa lavadora de dinheiro das orígens mais escusas e escuras que possam existir. Francisco herdou tudo isto, com oito anos de atraso, portanto com os problemas agravados, e mais velho oito anos, não com os 68 que teria, mas com os 76 que tem, tendo Ratzinger ocupado estes oito anos. Agora meus leitores muito aflitamente vieram não compreender porque chamei de derradeira a luta que ele trava contra a Cúria para acabar com a lavagem de dinheiro no Banco do Vaticano. É muito simples : Ou Francisco ganha esta guerra e se torna um Papa para nunca mais ser esquecido, santo como os quarenta e nove primeiros papas (menos um) por serem os primeiros e terem construido a Igreja, ou lembrado como alguns que pregaram, convocaram, ou organizaram as cruzadas, ou ainda os Medicis ou outros lembrados pelas piores razões, ou São Gregório I , o do canto, Servus Servorum Dei, ou João XXIII, pelo Vaticano II, ou é esquecido na longa lista dos outros 265 papas que lhe antecederam e de que ninguém se lembra, exceto os que lhe foram contemporâneos, e que, com o passar do tempo, também perderam-se nas suas implacáveis areias.
Francisco é herdeiro de toda esta longa lista, que inclui enormes excrecências, que inclui papas que mataram, torturaram, que venderam o papado, que praticaram as coisas mais infames que se possa imaginar. Francisco sabe tudo isto. Francisco é Jesuita, o primeiro desta Companhia a ser Papa, Companhia que também carrega uma enorme e terrível carga de um passado, inclusive por seu envolvimento com o Santo Ofício. Tendo por outro lado a disponibilidade dos jesuitas para o serviço e a sua tradição de pronta e inquestionável resposta ao serviço, pois são forjados na integridade e no compromisso com o servir, ou seja no que há de mais nobre e sublime no sentimento humano. Uma contradição, sim, mais uma nos assuntos da Igreja, como nos assuntos humanos. Francisco sabe disto tudo.
Depois de 1200 anos aparece um papa não Europeu. O primeiro papa do Novo Mundo, Francisco é Argentino, latino-americano, é deste Novo Mundo de tantas promessas, eldorado espiritual, Império de todas as expectativas, hemisfério do inédito, forjado por esta ligação com o novo, e o novo é o desconhecido, o inusitado, o inesperado. Assim deste Novo Mundo vêm todas as expectativas, e se é assim : Porque Francisco não será mais uma destas? O Novo deve trazer o Novo, a renovação, posto que na renovação vive o compromisso. E se o for, que maravilha será, sobretudo nesta época que vivemos, de insania, ruptura e desesperança. Será o maior dos balsamos, será o maior dos alívios, será luz fulgurante na escuridão destes tempos. Ah, Francisco...
Francisco que já traz uma lufada de ar fresco a este bafio do princípio deste terceiro milênio, Francisco trava sim sua derradeira Guerra, porque se a perder, para ele tudo o mais estará perdido, e para a Igreja, uma noção de futuro tambem perder-se-á. Haverá um futuro, porque sempre o há, mas será sombrio, ou ao menos ensombrado por este tumor infecto que deve ser extraído, arrancado e extirpado para o bem de uma fé que deve continuar a se expressar pelo bem dos que nela crêem. Agora é o primeiro Papa a tocar na maior chaga existente nas relações entre os seres humanos: a exclusão social, porque o meu possuir não pode ser de molde a privar outros de participar da partilha do bolo da sociedade, sendo excluido( Evangelii Gaudium). Terrível ter consciência e ter noção de como as coisas realmente são, e não poder fugir delas. Os outros papas têm passado por elas como se não as vissem, ou como se elas não existissem, porque assim não se lançavam ao vértice do conflito, não se lançavam ao olho do furacão. Quanta coragem Francisco.... Francisco sabe que se falhar perde-se com esta sua derrota, seja de que calibre for, inclusive o de sua morte, a esperança de uma renovação, a esperança de dar esperança a tantos que não sabem mais se a têm, se a perderam , se desesperaram, ou se desesperam, posto que a esperança não é, e não pode ser, contra todas as expectativas. O peso nos ombros de Francisco é imenso. É o peso da esperança que este Papa do Novo Mundo possa trazer, enfim, um Mundo Novo.