O blog O Olho do Ogre é composto de artigos de opinião sobre economia, política e cidadania, artigos de interesse sobre assuntos diversos com uma visão sociológica, e poesia, posto que a vida se não for cantada, não presta pra nada. O autor. Após algum tempo muitas dessas crônicas passaram a ser publicadas em jornais e revistas portugueses e brasileiros, esporadicamente.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
Neruda em Niterói.
Vivia na rua Britto num velho casarão de fazenda, que fora outrora sede das atividades de agricultura e pecuária
que ali se desenvolveram pelo XVIII e XI; para lá da restinga que se derramava até a praia ao meio do Saco de São Francisco, onde, nos finais do XVI, o apóstolo do Brasil, hoje santo, construiu uma igrejinha ao Xavier, marca do tempo de Charitas, quando os Temiminós dominavam a região, e seu chefe guerreiro, assumiu a causa portuguesa contra os franceses invasores, tornando-se em Martim Afonso de Sousa ao cacique Ararigboia. Do 1567 da reconquista da Guanabara ao 1572, da fundação da pequenina igreja, então capela, por Anchieta, nos seus tempos fluminenses, é época de lutas com os Tamoios. Com Anchieta tendo instalado a capela no pequeno morro no caminho que segue para Jurujuba, sobranceira à planície conformada pelo imenso areal e vigilante ao mar, dá-se o povoamento da região. No outro extremo da planície fica a propriedade que eu frequentava quase diariamente em minha adolescência, o casarão de paredes de taipa, com seu chão de tábuas corridas, que rangiam ao pisarmos, tendo então entrada pelo vasto salão do fundo da habitação, posto que a principal havia perdido o acesso fácil pelas vendas sucessivas dos terrenos envolventes ao casarão, que com os valores obtidos é que se mantinham as entradas de dinheiro para fazer face às despesas da vida do Senhor da casa, Carlos Vasconcellos Rodrigues de Britto, meu saudoso Kalika, a quem devo uma das vias de minha formação intelectual. Nesta casa li os melhores romances, a melhor poesia, descuti a mais fina política, analisei as nuances históricas, e me empreguinei dos mais nobres valores. Viva Kalika Animi plenus.
Foi nesse cenário que, justo no ano em que eu nasci, recebeu então o Kalika a visita de Pablo Neruda, num almoço do qual, quando já me entendia por gente e passei a frequantar a casa, ainda dele se comentava. Que fulgurante presença haveria de ter o imenso poeta chileno, para ser lembrado por todos, inclusive pelo António, o Jardineiro da propriedade, que até do cheiro do fumo do seu cachimbo se lembrava.
Neruda leu nessa tarde a sua Oda a Rio de Janeiro, que compusera em sua primeira visita ao Rio, tendo voltado muitas vezes ao Brasil onde era amigo dos nossos maiores, ode da qual trago aqui uma de suas versões em Português:
Ode ao Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, a água
é a tua bandeira,
agita as suas cores,
sopra e soa no vento,
cidade,
náiade negra,
de claridade sem fim,
de fervente sombra,
de pedra com espuma
é o teu tecido,
o lúcido balanço
da tua rede marinha,
o azul movimento
dos teus pés arenosos,
o aceso ramo
dos teus olhos.
Rio, Rio de Janeiro,
os gigantes
salpicaram a tua estátua
com pontos de pimenta,
deixaram
na tua boca
lombos do mar, nadadeiras
pertubadoramente indolentes,
promontórios
da fertilidade,tetas da água,
declives de granito,
lábios de ouro,
e entre a pedra quebrada
o sol marinho
iluminando
espumas estreladas.
O poeta mostrou grande interesse num Corrupião, tanto por sua beleza como por ficar impressionado que o pássaro cantasse o começo do Hino Nacional brasileiro, e se passeasse pelas costas dos visitantes. Esse corrupião, sofré em espanhol, era paixão do dono da casa, assim como fora o seu. Visto que lhe fora oferecido um idêntico dois anos antes em Goiás, onde há, havia, boa ocorrência da espécie. Chegou morto a Santiago, e motivou a Ode que se segue:
Oda al pájaro sofré
Te enterré en el jardin:
una fosa
minúscula
como una mano abierta,
tierra
austral,
tierra fría,
fue cubriendo
tu plumaje,
los rayos amarillos,
los relámpagos negros
de tu cuerpo apagado.
De la fértil Goiania,
te enviaron encerrado.
No podías.
Te fuiste.
En la jaula
con las pequeñas
patas tiesas,
como agarradas
a una rama invisible,
muerto,
un pobre atado
de plumas
extinguidas,
lejos
de los fuegos natales,
de la madre
espesura,
en tierra fria
lejos.
Ave
purísima,
te conocí vivente,
eléctrico,
agitado,
rumoroso,
una flecha
fragante
era tu cuerpo,
por mi brazo y mis hombros
anduviste
independiente, indómito,
negro de piedra negra
y polen amarillo.
Oh salvaje
hermosura,
la dirección erguida
de tus pasos,
en tus ojos
la chispa
del desafío, pero
así
como una flor es desafiante,
con la entereza
de una terrestre integridad, colmado
como un racimo, inquieto
como un descubridor,
seguro
de su débil arrogancia.
Hice mal, al otoño
que comienza
en mi patria,
a las hojas
que ahora desfallecen
y se caen,
al viento Sur, galvánico,
a los árboles duros, a las hojas
que tú no conocías, te traje,
hice viajar tu orgullo
a otro sol ceniciento
lejos del tuyo
quemante
como cítara escarlata,
y cuando
al aeródromo metálico
tu jaula
descendió,
ya no tenías
la majestad del viento,
ya estabas despojado
de la luz cenital que te cubría,
ya eras
una pluma de la muerte,
y luego,
en mi casa,
fue tu mirada última
a mi rostro, el reproche
de tu mirada indomable.
Entonces,
con las alas cerradas,
regresaste
a tu cielo,
al corazón extenso,
al fuego verde,
a la tierra encendida,
a las vertientes,
a las enredaderas,
a las frutas,
al aire, a las estrellas,
al sonido secreto
de los desconocidos manantiales,
a la humedad
de las fecundaciones en la selva,
regresaste
a tu origen,
al fulgor amarillo,
al pecho oscuro,
a la tierra y al cielo de tu patria.
Neruda chorou na presença do nosso a perda do seu. Ninguém se esqueceria, nunca, das lágrimas do poeta. Irá ainda mais tarde o poeta se dizer um pássaro, nesta sua verve tão particular. Penso que gostava muito dos pássaros, sobretudo por sua liberdade, essa mesma pela qual ele lutou tanto para que seu povo a tivesse, e que, pela dilatada riqueza do Chile, irá ser sempre foco de cobiça desta e servilismo daquele.
A sensibilidade de Neruda projetava o entendimento de coisas muito particulares, desde a diversidade da Natureza, que vem da infância, até a percepção dos outros, com seus universos de sensibilidade muito speciais, como também era o seu. Gostava de ler para os amigos, e recitava frequentemente poemas de outros autores. Dentre os que mais gostava encontra-se este, 'O Defunto', do médico mineiro Pedro Nava, que Neruda considerava o melhor poema da literatura brasileira.
O Defunto
A Afonso Arinos de Melo Franco
Quando morto estiver meu corpo
evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte.
Não quero caixão de verniz
ou os ramalhetes distintos,
os superfinos candelabros
e as discretas decorações.
Eu quero a morte com mau gosto!
Dêem-me coroas de pano.
Dêem-me as flores de roxo pano,
angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças,
como enormes salva-vidas,
com fitas negras pendentes.
E descubram bem minha cara:
que a vejam bem os amigos.
Que a não esqueçam os amigos
que ela perturbe os amigos
e que lance nos seus espíritos
a incerteza, o pavor, o pasmo...
E a cada um leve bem nítida
a idéia da própria morte.
Descubram bem esta cara!
Descubram bem estas mãos:
Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! Olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
em que sexos se demoraram
seus lábios quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
todos os gestos malditos:
até furtos fracassados
e interrompidos assassinatos...
— Meus amigos! Olhem as mãos
que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam:
elas fugiram
da suprema purificação
dos possíveis suicídios...
— Meus amigos! Olhem as mãos,
as minhas e as vossas mãos!
Descubram bem minhas mãos!
Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo
e até mesmo do meu corpo
as partes excomungadas,
as partes sujas sem perdão,
que eu esmagava nos sábados
e aos domingos renasciam!
— Meus amigos! Olhem as partes...
Fujam das partes...
Das punitivas, malditas partes...
— Meus amigos! Arranquem as suas...
Esmaguem as suas...
Amputem as suas...
Eu quero a morte nua, crua,
terrífica e habitual,
com o seu velório habitual
Ah, o seu velório habitual...
Não me envolvam num lençol:
a franciscana humildade,
bem sabeis que não se casa
com meu amor pela Carne
com meu apego ao Mundo.
Eu quero ir de casimira:
calça listrada, plastron...
com os mais altos colarinhos,
com jaquetão com debrum...
Dêem-me um terno de ministro
ou roupa nova de noivo...
E assim, solene e sinistro,
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que a sua lembrança envenene
o que restar aos meus amigos
de vida sem minha vida.
— Meus amigos! Lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
deste pobre terrível morto,
que vai se deitar para sempre,
calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
os penetras escorraçados,
as prostitutas recusadas,
os amantes despedidos,
como os que saem enxotados
e tornariam sem brio
a qualquer gesto de chamada.
Meus amigos! Tenham pena,
senão do morto, ao menos
dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
e olhai os vossos também...
Rio de Janeiro, 23 julho de 1938.
Publicado no livro O Defunto (1967).
Esta visita que Vos conto foi a única vez, que se saiba, que Neruda esteve em Niterói, e faço por lembrar, com sua passagem pela cidade onde nasci, o grande poeta, neste 2023, quando em finais do próximo Setembro ir-se-ão completar cinquenta anos de sua morte. À seguir vale a pena ler Vinicius no poema dos três Pablos.
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