O blog O Olho do Ogre é composto de artigos de opinião sobre economia, política e cidadania, artigos de interesse sobre assuntos diversos com uma visão sociológica, e poesia, posto que a vida se não for cantada, não presta pra nada. O autor. Após algum tempo muitas dessas crônicas passaram a ser publicadas em jornais e revistas portugueses e brasileiros, esporadicamente.
domingo, 6 de outubro de 2024
Um ano de nada.
"Hoje é o dia do teu aniversário..."
Um ano de tudo, onde tudo era impensável, impossível. Tomar um banho com aquele sabonete que me deixa com um cheirinho tão bom. Simplesmente tomar um banho. Lavar o rosto. Trocar de roupa. Molhar os lábios. Saber onde estou. Aquela camisa que gosto tanto, meu travesseiro; se faz frio aquela manta que minha mãe me deu. Ir à janela. Ver o Sol. Que Sol? O Sol no rosto. Que rosto? Um dia o vi nos cartazes na televisão. Eles viam o noticiário numa língua que não entendo, e estava lá nos cartazes na mão de uma manifestante, meu rosto. Será que eu ainda existo?
No princípio a certeza que ia logo acabar, soubemos que uns outros quantos haviam sido trocados, logo sería nossa vez. Trocariam-me e tudo voltaria a ser como dantes, poder ir na cozinha e fazer uma omelete, tomar um sumo, não aquele que gosto tanto, qualquer um. Ir a privada sozinho, sem ninguém me ver. Mas não! É só essa espera na escuridão. Quanto tempo fará? Já não sei o que é tempo.
Não sei se é dia, não sei se é noite. Se tenho fome, só me resta esperar. Se tenho dor, só esperar que passe. O pior de tudo é essa falta de noção. Não faço votos. O que é isso que vivo? Pra que é isso? E ninguém faz nada? Tudo que há é espera. Nada que seja esperança. Essa que perdemos no meio do caminho, esse caminho que fizemos, os que estamos vivos, mas que não nos levou a nenhum lugar.
Outro dia vi um blusão como um que eu tinha. Onde estará meu blusão? Onde estará minha mãe? Meu pai, minha irmãzinha? Eu tinha um namorado. Uma amiga, onde estarão? O que é que eu sou agora? Testemunho o que? Vivo o que? Espero o que?
Às vezes ele vem com a mão e toca-me, abre-me as pernas, antes, quando eu dava luta, me batiam, e outros vinham-me segurar. Já não luto mais. Já não sei o que sou. Sinto o cheiro de meu sabonete, aquele que não existe, que nunca existiu, e que mamãe comprava-me sempre. Onde andará meu sabonete? Onde andará minha mãe? O QUE TRANSFORMOU O RESPEITO E O SORRISO NESTA MISÉRIA ABSURDA?
Às vezes penso num passeio que dava. Na praia. No banho... e essa imundice no corpo que não me deixa. Mudam-nos para outro lugar, que é o mesmo. Não há luz.
Penso demasiado em coisas banais. Gostava de escrever qualquer coisa, mas não tenho como. Os poemas e a filosofia deixaram-me, penso em arroz, em dormir muito e sempre. Para sempre, talvez.
Tínhamos muitas perespectivas daquilo que desejávamos, como não desejamos mais, nem entendemos o que será desejo, NÃO TEMOS PERSPECTIVA. Nada vemos que não seja o mesmo, e o mesmo é esse nada que é tudo. Não é vazio. São inexistências.
Desde aquele dia em que estávamos no festival deixamos de existir. O que será existir? Ao menos ter vontade, poder dizer não. Querer dizer sim a tantas coisas, meu sabonete. Que sabonete? Água para lavar o rosto. Quando volto a ser eu?
Nessa expectativa reside o vazio que enche tudo, é então o NADA, que não é a mesma coisa.
Começo a entender subtilezas inimaginadas.
Nesse dia fizeram uma festa. Era um ano de nada. E com ironia nos deram: PARABÉNS.
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