quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O Estuário à foz de Lídia Jorge.




                                                                               
                                                         Somos um estuário sem foz, porque desaguamos em nós mesmos.


O livro vale pelas três últimas páginas, a 280, a 281 e a 283, não nos contando depois mais nada, porque também não é preciso.

Só mesmo um autor consagrado ousaria escrever esse livro; aliás mais custosamente, no feminino, uma autora. Um imenso glacis, usemos aqui a designação econiana, quando nos ensinava que há um declive que o leitor deve percorrer até estar capturado pela trama do livro. Palavras de vento, cheias de vento que sopra irregularmente e faz esvoaçar essas palavras até que poisem aleatoriamente e se acalmem, inda que não acalmem o leitor. Só mesmo a fé na autora, essa que os leitores põem em certos artífices da palavra em lhes aceitar, não direi tudo, mas muitíssimo do que esses lhes dão, confiantes que eles sabem o que fazem; e a fé de ofício da autora em desenovelar a trama desigualmente, sempre a tecendo de forma a enredar uma e cada vez mais o leitor, é, pois, rede envolvente, mas também é verdade que a autora excedeu vários limites nesse glacis demasiado longo, até que entra na narrativa corpo da história, e nos deixa ver do que se trata. E logo chegamos à página 227, quando começa a transbordar toda a angústia da maturidade humana, coisas da miséria, grande ou pequena, que nos cabe, revelação das pessoas que desejam compreender o mundo, e neste, compreender também o da escrita e dos escritores que buscam dar algo a seu leitor, porque o que irá importar é criar "um objeto que servisse os outros através de exemplos descritos em nome da beleza" (página 277) no mais, sem cumprir esse ideal, os livros tornam-se apenas em mais alguns objetos para atulhar o mundo. A angustia dessa busca é mais que existencial, pois um pouco além irá proporcionar-se também pelo que se não viveu, e pelo que deveria ter sido, como na Pneumotórax do Bandeira: "A vida inteira que podia ter sido e que não foi." Confessando mesmo, logo adiante, Lídia Jorge, que deseja discutir simultaneidade e circularidade, esses dois fenômenos que conformam a vida com seu vício e sua repetição de forma desastrosa e detentiva. Restando-nos dizer como dizem todos a Madame la Marquise: "Tout va trés bien"... porque a realidade sempre nos ultrapassa e muito nos perturba e abespinha, e a ilusão de uma realidade confortável se torna sempre mais desejável, sendo tantas vezes preferível.

Pois chegados à página 227 prepara-se o desenlace na sintonia da compreensão da natureza humana e suas misérias. Começo imediatamente a ouvir na minha mente a canção de Aldir Blanc e Moacyr Luz intitulada "Coração do Agreste" composta para ilustrar o texto de Jorge Amado chamado "Tieta" que tem dimensão emocional semelhante a esse "Estuário", tendo um, cenário rural, e o outro, urbano. Então, uma vez com essas misérias explicadas, somos insultados com uma falsa configuração do tempo, esse  mesmo que nos escraviza e liberta, pela evocação de umas saudades das suas três manifestações juntas, na apreciação completa do fluxo temporal, como um rio que chegasse a seu estuário para não desaguar, pela impossibilidade de extinguir seu fluxo. E aí meu poema 'Condição de ser' vem me consolar, lembrando Faulkner quando diz:" The past is never dead, its not even past." Então, relembro o poema:                                                                         
                                                                                        O passado é sempre presente
                                                                                        O presente às vezes
                                                                                        O futuro nunca

                                                                Nunca evoques o ausente
                                                                Não retenhas os jaezes
                                                                Não esqueças o que trunca

                                                                                       O passado é sempre presente
                                                                                       O presente às vezes
                                                                                       O futuro nunca.
E tomo pé de novo da realidade, ou do que supostamente encaramos como tal.

Um reparo marcante ao longo do texto de Lídia, é a presença limitadora e delimitadora da cidade, pois tudo que existe, existe em algum lugar, em contraponto com a presença circunstancial das personagens, e a presença descongestionante do Tejo, desafogo que se repete como um bálsamo para todos (para a narrativa, para as personagens, para os leitores, e creio mesmo que para a autora) desobstrução que é sempre recorrente. Tudo levando a que o torniquete do pensamento se aperte e desaperte ao longo do texto, deixando-nos de vez em quando respirar.

Continuo a leitura, vai terminar o romance, e pressinto um embate, e sinto uma distorção temporal que a pouco e pouco me oprime, esmaga meu entendimento, amassa meu poema, reflui meu sentimento, e me faz perder. Agora a música de fundo é outra, toca agora de Rodgerss & Hammerstein "Something Good", e dois de seus versos ecoam fortes dentro de mim:
                                                                "Nothing come from nothing.
                                                                  Nothing ever could."

Sim aquelas três últimas páginas são tudo e são bastantes, porém impossível percebe-las na sua plenitude sem as duzentos e oitenta anteriores. E nos damos conta que o romance concluiu-se, e que nossa única possibilidade é, como nas palavras sábias na música do Aldir Blanc, sermos o peixe e o seu próprio pescador, porque fomos levados a outra dimensão, essa que refunde o tempo, a espiritual, ou poderá ser talvez literária, se a autora for Lídia Jorge.

Restar-nos-á, nesse traspasse dimensional, como condenados a vida, aceitarmos as alternâncias das condições que concorrem para que, como filhos do tempo, entendamos que não se encontram saídas.

Não se encontram saídas. . .

Sopra um vento que as devasta
Correm águas que as alagam
E profícuas, rebeldes, d'alma vasta
Manam em areias que as tragam

Condenados sem remédio
Recusar é se perder
Então entreguemo-nos ao tédio
E ao prazer que é viver

A vida é estuário sem foz
Em cuja enchente há mistura
Laguna antiga, que atroz
Transborda calma e pura

E nesse meio doce-meio salgado
Onde se faz a grande mescla impura
Para que se possa pôr de lado
Toda sua inteireza dura

Pois que só se manifesta esfacelado
Seu pendor sem saída ou abertura
Sem foz, que só em nós, avassalado
Faz-se manifesta criatura

Como permanente e insistente algoz
Esteiro que sutilmente nos tortura
E quando estivermos bem próximos do que queremos foz
Perdidos, então, já possamos morrer da cura.

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