Sim, leram bem, a miséria. Porque com a concentração crescente da riqueza nas mãos de tão poucos, e o reino do dinheiro, o império que este estabeleceu no mundo desde que surgiu em sua fase abstrata, no segundo quartel do XIX, quando passamos a ter distorções cada vez mais acentuadas nos valores das coisas, sobretudo quando este é atribuído, bem como na distribuição da riqueza, com sempre maior concentração desta nas mãos de menos pessoas, até a incrível distorção atual onde 26 cidadãos possuem tanto quanto a outra "metade" menos favorecida dos seres humanos, ou seja, possuem metade da riqueza existente, ou seja meio a meio com todos os outros que compõem a Humanidade. (O número está certo, são duas dezenas mais meia dúzia num planeta habitado por oito bilhões, ponho aqui a desproporção entre as grandezas dos números, para a tornar mais evidente: 26 x [em] 8.000 000 000) Três bilionésimos dos seres, ou seja nada, controla metade de tudo, pode haver maior loucura?
Tudo isso dito assim talvez não dê conta ao meu leitor, do que representa o que se está a passar cada vez com maior velocidade e poder de concentração da riqueza que existe na mãos de cada vez menos gente. Essa riqueza enorme, cuja existência ultrapassa em muito tudo o que se possa comprar ou vender, porque, como sabemos, os valores apreciados por todos residem em muita coisa imaterial e inquantificável, o que não impede, com a grande distorção dos valores que passou a existir, que esses valores possam ser, e sejam, transacionados agregados a bens reais. Vejamos: Por exemplo a beleza, não pode ser comprada ou vendida, mas um lugar ou uma coisa bela podem, assim agregando o valor imaterial a um bem material. A decência ou o caráter não podem ser transacionados, mas a pessoa que os tenha sim, podendo até deixar de os ter em virtude da transação, mas no momento em que esta se dá, negocia-se, junto com a pessoa, seu caráter. Por outro lado as coisas necessárias, aquecimento no inverno, comida na mesa, seja o que for, até aos cinco bifes que um pobre não consegue comer numa refeição, não só por os não conseguir engolir, como também não os consegue engolir os mais rico, nem o mais rico de todos, mas que os terá sobre a mesa, enquanto o pobre não. Temos com tudo isso, um mundo distorcido na apreciação e valorização de tudo que realmente tem valor, dando acesso ou não ao básico a milhões de excluídos, numa franja de estreitas relações, para que tudo possa, desse modo, ser transacionado. E porque?
Porque o dinheiro perdeu os limites. Antes, quando o dinheiro era feito em material raro (ouro, prata) o intrínseco limitava sua expansão, porque as quantidades limitadas desses materiais regulavam a possibilidade de sua existência, e com isto, regulavam a expansão monetária, ao mesmo tempo que a expansão econômica forja maior valorização da moeda, se não aumenta o meio circulante, gerando nitidamente povos ricos e menos ricos, que, tendo essa riqueza vinculada a sua economia, não a expandia sempre, e sempre mais, como se deu depois, porque a matéria para cunhar era limitada, evitando a expansão do dinheiro. Quando Espanha descobriu uma montanha de prata em seus domínios coloniais, no Peru, viu-se as distorções e estragos que o dinheiro pode causar, pela vez primeira na história da humanidade. No entanto a ganância dos homens impulsionará a expansão do dinheiro para níveis impensáveis, muito para além do real crescimento econômico, única medida
verdadeira da expansão monetária que a pode justificar, pois havendo mais riqueza, é perfeitamente normal e compreensível que haja mais divisa que a represente. Porém com a criação dos mercados financeiros, que inicialmente eram vinculados aos econômicos, essa suposta riqueza se expandiu muito, de tal forma que arranjou todos os artifícios para existir sempre mais e em maior numero. O dinheiro hoje sendo apenas um pedaço de papel impresso, ao qual as pessoas estupidamente valorizam, e que por muitas más e diversas razões, se vai imprimindo mais e mais, porque a ficção de seu valor ganhou uma prevalência de tal ordem, num vértice de possibilidades impossíveis, desde títulos que não valem nada à mercados que não existem. Poderá aí meu leitor discordar, tão crédulo está que as ações têm valor, que os títulos que comprou, também, e que os mercados são coisas seríssimas. Vou lhes mostrar que não é assim.
Os títulos e ações.
A ideia jurídica que contém a palavra título é de que este autentica os direitos de quem os possua. Essa ideia se funde com a ideia da química, e da ourivesaria, de que se possui de uma concentração, de uma proporção de um todo [daí o título de um metal nobre representar o grau de sua pureza], com esta mesma lógica passamos a representar as obrigações a que está sujeito o banco, ou a companhia que os emita e transacione. Assim as ações, que são pedacinhos do bolo que constituiriam a empresa, e que todos juntas representam, valeriam essa pequena parte, essa fração que representa. Mas não é assim, é tudo promessa, é tudo papel, e poderá nunca se realizar em valor. Só que com isso dá margem, permite a expansão monetária, pois teoricamente mais riqueza foi criada. O que é muito desejável num mundo onde se espera que todas as economias cresçam. Sendo assim, ao "criar" uma riqueza que não existe, abre espaço com isso à criação de dinheiro que a represente, quando vier a estar ativa, a existir. Mesmo que depois a empresa venha a falir, fica sua memória monetária, ou seja a porção de dinheiro que ajudou a criar, permitindo dessa maneira dois contra-sensos que se anulam, mantendo o engano. Com a riqueza esperada ficará justificada a expansão monetária, mesmo que seja só por sua memória [no caso de não vir a existir] já estará criada a "desejável" sensação de riqueza, e tudo lhe fica vinculado. Com esta ilusão, a sensação de maior riqueza, exatamente a mesma que tem um drogado, ao aceder à fonte de sua desgraça, e de seu prazer, a adição se re-alimenta, num processo viciado e vicioso de expansão monetária sem expansão econômica. Com essa prática os mercados, sobretudo os financeiros, se deliciaram com mais dinheiro, como dinheiro-dependentes que são, da mesma forma que os tóxico-dependentes necessitam de mais da sua substância de vício para estarem contentes e calmos.
Os mercados.
Estes são um exemplo sórdido da imprudência, loucura, ganância e desfaçatez humanas, tão translúcidos que só não os vê quem não quer (os mais cegos) mas também não vêem aqueles a quem convém sua existência. Criaram mercados de tudo, a maioria
dos mercados mercadeja ilusões e mentiras, como os casinos, onde se joga apenas numa esperança, uma possibilidade, ainda que pequeníssima, de se acertar no número da aposta, sendo, entretanto, mais honestos os casinos, posto que sabendo que centenas de milhares irão perder, um sempre ganhará, aquele que acertar no número, ou nas cartas. Nos mercados todos perdem, muitas vezes até os que bancam o jogo. Poderão, evidentemente os que se retirarem a tempo, sair com seus ganhos, ou os que só industriarem as movimentações mercantís, sem comprometerem seu capital, ou os ganhos já realizados. As bolsas de valores são isso, e as expectativas de lucro, e os consequentes investimentos, se baseiam em coisas tão improváveis como "se chove muito ou pouco", "se este ou aquele homem é eleito", ou ainda "se haverá ou não lucros para uma determinada empresa este ano", não que este lucro venha a ser repartido, é só uma aragem a insuflar o fogo das expectativas. É verdade que muitas das empresas do 'stock market', são reais e valiosas, mas sempre sujeitas a flutuações irreais, porque os mercados, sobretudo o de ações, se transformaram numa grande jogatina, não refletindo, como deveria ser, um estoque de recursos, como sua denominação inglesa sugere, ou seja uma acumulação de valores, poupanças, onde milhares, ou milhões, financiariam e participariam na expansão econômica de uma empresa, tornando-se 'sócio ' dela - dono de um pedacinho da empresa, que de outra maneira não se tornaria possível, porque a empresa não conseguiria reunir o capital sem tantos 'sócios', mas não é isto que se passa.
No entanto os mercados sofreram tão grande perversão, que passaram a lidar com abstrações, começando pelos ditos mercados futuros, que transacionam coisas que irão existir, ou não, como os frutos das próximas safras, até débitos que deverão ser pagos, se o forem. E foi com essa última forma que criaram o sub-prime, que levou ao mundo a crise de 1998, e que gerou, em seguida com a "necessidade" de interveniência dos Estados, a crise das dívidas soberanas, mais que tudo pela perda de confiança em sua capacidade de pagar essas dívidas. Tudo isso é uma falácia, uma fachada de oportunidades de investimentos, que na verdade são um logro ou uma jogatina, dependendo da malícia com que são criadas. A única coisa incrível nisso tudo é que os governos autorizem a constituição desses mercados.
O fim do sistema financeiro.
Só com o fim do sistema financeiro, onde só seria permitido o empréstimo das poupanças com garantias reais por parte das empresas, e para aquisição de imóveis, mais nada, só assim nos permitiria acabar com a jogatina e com a especulação, e o dinheiro poderia voltar a ter valor dentro de parâmetros que estabeleceríamos. Doutra forma não há solução. O caminho para as pessoas, para a esmagadora maioria delas, será tornarem-se cada vez mais pobres e despossuídas.
A relatividade e a futilidade dos números.
Se a casa de seus sonhos custa 10, 100, 1000, 10.000, 100.000, 1.000.000 ou 10.000.000 tanto faz desde que sua possibilidade de atingir qualquer um desses números (não são valores) com seu esforço, possa se concretizar, visto que o objetivo é a casa, o número que ela custa não importa nada, o único que importa é o número de salários seus que serão necessários para adquiri-la. Quantos? Ou seja qualquer número em si é fútil, só a sua comparação com aquilo que cada um consegue atingir faz lógica. Relação do esforço. (Alguém já me deve estar xingando.) O grande problema é que esses números com seu crescimento artificial, afastaram a maioria das pessoas, porque seus rendimentos não acompanharam o crescimento dos números. (A desvalorização do trabalho é diretamente proporcional a valorização do dinheiro.) E mais, a artificialidade desse crescimento impôs valores (que eles passaram a representar) cada vez mais difíceis de atingir pelas pessoas em geral, um número cada vez maior e inatingível, o que se deu para benefício de uns poucos. E muitas dessas pessoas que iludidas acharam bem, não se deram conta que logo elas também seriam ultrapassadas e excluídas, ou que logo seus filhos seriam pobres. Essa expansão também vem consumindo aceleradamente os recursos do planeta e promovendo sua destruição. A compreensão de que essa relativização que nos é imposta, que é o instrumento através do qual o dinheiro vai afastando a maioria das pessoas de sua acumulação, a tornando mesmo impossível, para a imensa maioria, a atingir as altitudes onde se vai colocando o dinheiro cada vez mais alto, cada vez mais longe, cada vez mais inacessível, é a visão do inferno, do império da mentira, e da ilusão, com seus artifícios enganosos mais envolventes em ação.
A imparável ascensão do dinheiro.
Como nos metemos nesse mundo virtual da mentira, e a única maneira de sairmos dele seria voltarmos a restringir a emissão de moeda a um lastro (Lembram-se do lastro ouro que ninguém respeitou?) E transformar 70% do dinheiro existente em stocks do que quer que seja, e todo aquele que o fosse converter, perderia uma percentagem, tão mais alta quão maior o valor convertido. E que se acabassem com os mercados, para evitar a especulação e a criação artificial de riqueza. Como isso não vai acontecer, teremos o dinheiro sempre a crescer, porque cresce porque cresce, fruto da ambição e da ganância, sem nenhuma base econômica para que seja assim, a ascensão do dinheiro será sempre imparável, de tal sorte que só o que ela cria na sua outra ponta nos poderá salvar.
O enxugamento da classe média.
A classe média, A, B, e C, não só a dos países pobres, ou em desenvolvimento, mais expostas, como é compreensível, às oscilações de toda ordem; mas a dos países ricos, vem vivendo uma diminuição, um sistemático enxugamento de sua parte na pirâmide social, e é já um fenômeno generalizado, era 72% passou a 69%, 68% em países onde a distribuição da riqueza estabelecia a harmonia da sociedade, a dita mobilidade social, bem como era o eixo da máquina de promover progresso. Agora, com a ascensão imparável do dinheiro, a classe média vem cada vez mais diminuindo e perdendo importância, isso, junto a instabilidade generalizada, desde a do emprego, com a mobilidade laboral que é cada vez maior, e já não há empregos para a vida, até a instabilidade nas relações, inclusive familiares, fruto de um mundo cada vez mais inconstante, a classe média com a dificuldade acrescida de se reproduzir, ou seja, muitos dos filhos nascidos nessa classe não se conseguem manter nela, e muito poucos das classes inferiores conseguem ascender à classe do meio, e tudo isso dilacera a mais importante parte da estrutura social, a que cria movimento de circularidade no sistema, permitindo que haja evolução, destarte gerando estagnação e desesperança.
A "impensável" ascensão da miséria.
Todos os governos, através de todos os seus organismos, todas as organizações sociais, todos os membros do dito terceiro setor, trabalham diariamente para tentar controlar a contínua expansão da pobreza, que, apesar desse contínuo esforço diário, da inversão de imensos recursos, da ação de milhões de cidadãos e entidades, não para de crescer. Pelo contrário, todos e a cada dia se expande, aumentando o número de pobres, ficando cada vez mais vazio esse esforço em tentar evitar a já acentuada expansão da miséria, que é o nível abaixo do qual a pobreza se torna insuportável. Mesmo apesar de todo este esforço, a miséria segue crescendo, abrangendo um número cada vez maior de pessoas em todo o planeta. E, como tudo está interligado, a riqueza dos poucos é responsável pela miséria dos muitos.
A desesperança é base para o desespero.
Com a generalização dos fatores negativos que bloqueiam que a riqueza possa se espalhar e se dispersar, e com a crescente e doentia concentração da riqueza, manifesta-se uma geral perda de esperanças, que bloqueia a economia em muitas vertentes, inclusive no pequenino e médio negócio, o que lentamente vai desestruturando a sociedade, marginalizando sucessivas camadas que não conseguem ascensão, bloqueia o elevador social, e arrasa a possibilidade de haver distribuição das rendas. Tudo isso gera uma absoluta falta de esperança! E para os que vivem sem esperança, sem verem como possam ter progressão social, essa progressão, tão benfazeja ocorrência, que deu aos EUA toda sua grandeza, surge um sentimento insidioso que corrompe toda a alma social, o desespero das pessoas por não conseguirem melhorar suas vidas.
O título do artigo.
Como em tudo nesse mundo, é no veneno que encontramos a cura do mal, e aí reside nossa esperança. Assim como a evolução das armas levou a que não se conflagrasse mais uma guerra mundial, no seio da qual, na esperança de a ganhar, acabariam por usar como recurso, um poder
bélico capaz de destruir várias vezes o planeta, e com isso pararam (Santa bomba atômica!). Só com a miséria de um percentual elevadíssimo da população do planeta vejo alguma esperança para o fim da selavajeria econômica, essa máquina de fazer miseráveis que impera no planeta hoje em dia. Posto que a expansão da miséria a níveis insuportáveis levaria a uma reação dos miseráveis para se apropriarem das fontes de recursos que existem, extinguindo o privilégio de as utilizar, apenas estar restrito aos quem têm o dinheiro para isso. Essa reação acabaria com o "valor" atribuído ao dinheiro, que passaria a não valer, terminando com as disparidades de bilhões não terem o que comer, para que alguns comam os tais cinco bifes, e possam possuir todos os luxos, todos os confortos, todos os prazeres que há no mundo. Irá correr sangue, e muito, mas será o único caminho de salvação.
Comentário.
Tanto na ganância sem fim, como na estupidez gigantesca, residem as forças da mudança, pois que não é a bem que se dão revoluções! Alguns de meus leitores certamente
não acreditarão nas palavras dessa crônica, e me creditarão uma visão distorcida da realidade, assim também pensava a nobreza francesa antes do 14 de Julho, até que tudo se virou de ponta cabeça. Quem viver, verá.