segunda-feira, 15 de abril de 2019

Eu, Quasímodo.







Horrível, peçonhento, com mau-hálito, com azias, miserável, horrendo, dantesco, pior hugoniano, corcunda a pular as arquitraves em chamas, agarrado a capitéis e arcobotantes que tombam, pináculos que desmoronam, botaréus diversos desamparados, enquanto tento fugir ao fogo. O imenso fogo que me devora a alma.

"Notre-Dame de la tristesse."

Minha catedral amada, símbolo de uma época, história de um povo. Templo de Isis. Gotiquíssima Catedral. Alma de Paris. Teus vitrais, teu colorido, tuas sombras e reflexos, tuas rosáceas imensas, teus  pequenos colorismos a meus pés, como que fragmentadas evocações de eternidade agora enfumaçadas. França apunhalada em seu coração. Tantas vezes santa, preciosa por si mesma, tesouro de tesouros, tua santidade, tua presença, tua força, tudo rasga meu peito com todas as tristezas possíveis por te saber destruída. Tu que mantinhas teu diálogo poderoso com todos que te procuravam, e mesmo com os passantes, em infinitas conversas de proximidade, tua função oculta, tua sina. E sempre aberta os acolhia a todos, sem excluir ninguém, fosse de que credo fosse. Nem o animalismo nazi foi capaz de atacá-la, pelas deferências que evocas, todas, pelo respeito que impões, todos, intocável. Urbi et Orbi. Ilhada no teu sítio "da cidade" e universalizada em teu símbolo do mundo inteiro. Tuas duas irmãs portuguesas, a mais velha de Braga e a tua coetânea de Lisboa, choram comigo aqui, desde Portugal.

Jour de ma misére.



Da plenitude da estupidez.

Há coisas que não podem acontecer, simplesmente não podem. Alguém pensa que se possa quebrar a Vênus de Milos, ou a Vitória de Samotrácia? Ou que pudessem rasgam a Monalisa? Franceses, vós sois guardiães de muitos tesouros que não são vossos, são universais, não vos podeis permitir tais desmazelos. Não podem ocorrer semelhantes negligências. Não pode, ponto. Notre-Dame que é tão vossa, é tão nossa, é universal. Num país como o Brasil, onde há ainda longuíssima caminhada a fazer, que se tenha incendiado São Cristóvão, é tanta tragédia como a da Notre-Dame, mas que não deveria poder acontecer ainda em menor grau de possibilidade, porque o Brasil ainda tem muito pouco. E em São Cristovão perdeu-se praticamente toda a história do Brasil. Comparação absurda, posto que as impossibilidades não têm gradação. Não pode, ponto. E nesse ponto toda a força da impossibilidade, e, como impossível, não podemos admitir nenhum espaço ao possível, não há explicação, tudo o mais serão escusas.

Maldito século XXI.

Desde que começou esse milênio amaldiçoado, temos visto sucessivas destruição de nosso passado, começadas com a ação de uns demônios soltos pelo Oriente Médio, que se intitulavam jihadistas, mas de santa sua guerra não tem nada, mas de estúpida e absurda, tem muito. Começou em 2001 com a dinamitação dos budas de Baniyam, no Afeganistão, por uma versão local destes animais, que se chamavam talibães. Seguiu-se 2003 com o Museu Nacional do Iraque, em Bagdad, saqueado e destruído a marretada. Depois temos templos inteiros, teus irmãos Notre-Dame, a Mesquita do Profeta Jonas, o Mosteiro de São Behnam e Sarah, o Mausoléu de Imam Dur, e Mar Eliam em Qaryatain , Baal-Shamim, em Palmira. Depois cidades inteiras explodidas para dar curso a simples estupidez humana: Hatra, Apameia, Dura Europos, Mossul, Nimrad, Khorsabad, Nínive. Porém essa seria a demência religiosa, obsessão de criar um império que nunca se realizará, o islâmico, doença na cabeça de homens metidos numa guerra absurda, de gente atrasada e inculta. Mas São Cristovão arder até o último documento, e hoje te veres arder, no coração da mais prestigiosa cidade do mundo, Paris, a ti magnífica Catedral! Nós, os ocidentais, os civilizados criadores de civilização e novos mundos, nós respondermos perante essa desgraça, não me digam acidente, não empreguem o termo fatalidade, que não há outro que estúpida incúria, e por ele respondemos. A não intencionalidade, como a dos pretensos jihadistas, não nos diminui a culpa um miligrama, talvez até a acrescente.

O fato irrevogável e imperdoável.

Este fato de que ardam mil anos da história do mundo, que roubarão a alma, por mais que a reconstruam, daquelas paredes vetustas, daquela eternidade impregnada, daquela presença magnífica. Minha igreja, símbolo de eternidade, o turismo de topo imporá tua presença novamente, tu que sempre ali estivestes. Talvez até te angariem mais turistas ainda, para que vão conhecer tua magnificência, para te irem ver de perto. Mas nunca mais serás a mesma, por isso os responsáveis por este crime, se encontram amaldiçoados, irresponsáveis que são, todos e cada um deles, autores de tua desgraça.

Quasímodo.

Arrepio-me de horror. Desfaleço de saber-te dilacerada. Torno-me monstro e arrepelo-me só de pensar na tua decadência, símbolo transcendental que és. Sou Quasímodo, mostrengo, por que me sinto feio, convulso, retorto, miserável em teu pesar, impotente de te salvar, vendo-te arder, cenário absurdo ante o qual todas as palavras são nada.









1 comentário:

  1. Gostei do que li e farei o meu comentário após ler o artigo na sua totalidade.
    Sei que posso gostar ainda mais!
    Obrigada!

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