O blog O Olho do Ogre é composto de artigos de opinião sobre economia, política e cidadania, artigos de interesse sobre assuntos diversos com uma visão sociológica, e poesia, posto que a vida se não for cantada, não presta pra nada. O autor. Após algum tempo muitas dessas crônicas passaram a ser publicadas em jornais e revistas portugueses e brasileiros, esporadicamente.
terça-feira, 5 de maio de 2020
A portuguesa na Torre de Babel.
Desentendimento, foi o que pretendeu o deus entre os da Torre, baralhando-lhes as línguas. É a história do Génesis mil vezes contada. Que o deus foi malvado ao gerar confusão, pretenderão alguns, quando, na verdade, criou desse modo essa diversidade, que só fez por enriquecer o mundo. Marduque, teria sido o deus da gente no zigurate, que ao baralhar-lhes as línguas, deu a Humanidade um enorme tesouro, este que entretanto se vem acabando aos poucos, inversamente à generalidade das coisas, não pelo uso, mas pela condição oposta, o desuso.
A Torre na visão de Brueghel.
Os idiomas, que terão sido mais de dez mil, têm ainda hoje sete mil diferentes línguas faladas, mas sabe-se que se vão extinguindo; perto de quatro mil deles, mais de metade, terá viva hoje sua última geração de falantes, e como se passa com a descendência, se um casal não tiver filhos, morre com ele seu património genético, que deixará assim de existir, nos idiomas dá-se o mesmo, se morrer seu último falante, essa língua deixará de existir, passará a morta, essa condição de limbo de algo que se conhece, que até se pode usar, mas que sua existência que dependia de que alguém a praticasse, acabou, deixou de existir, passando a condição de morta, porque não há mais gente viva que a fale como sua expressão natural. Assim temos nesse momento milhares de pessoas que são as últimas falantes de milhares de idiomas que com elas morrerão. Seus filhos, para quem os tiver, já não são falantes, e terá morrido com seus pais a herança idiomática de sua cultura, o que põe por terra o edifício linguístico, a grande torre, o enorme zigurate da construção cultural que é um idioma.
Porque o idioma não são as palavras nas quais se expressam quem o fala. O idioma não é o nome das coisas as quais designa, o idioma não é o modo de dizer apenas, a forma como chamamos cada coisa. Não, um idioma é uma forma de ver e entender o mundo através de seus valores particulares e próprios, é a grande construção de uma cultura, e que se materializa não como torre, mas como ponte, a que faz a ligação imprescindível à existência de todos nós, a que se estabelece entre o espírito e a matéria, imprescindível porque nossa existência depende essencialmente disto, desse entendimento, e nossa realidade se forja no modo como essa ponte se estabelece.
As palavras, e seu corpo estruturado, o idioma, dão a visão e a compreensão de todas as coisas, como quereria o grande poeta português Ary dos Santos, no seu "O Objecto", "há que dizer-se das coisas o somenos que elas são" e nesse somenos todo um universo de sensibilidade e expressão, que é como dizemos das coisas, que é como as sentimos e entendemos, essa a função do idioma, que, como universo estruturado, encarrega-se de estabelecer inter-relações próprias que geram um entendimento particular. Com isso quero eu dizer que um chinês entenderá totalmente diferente uma xícara, da forma como a entende um português, e este da forma como a entende um brasileiro, apesar de ambos a dizerem xícara, e não 杯子 (Beizi) como diz o chinês, porque a xícara no português do Brasil, não é a mesma xícara do português de Portugal, porque a ponte entre o espírito e a matéria é outra em cada país, porque variou, e expressa uma realidade e entendimento diverso.
No final desse século primeiro do terceiro milénio, quando só restarão pouco mais de três mil diferentes idiomas, e o planeta comportará perto de onze bilhões de seres falantes, perto de um vigésimo se expressará em português, essa maravilhosa língua em que me expresso, um idioma vivo e em crescimento, que hoje ganhou um dia para se comemorar como o Dia Mundial da Língua Portuguesa, reconhecido pela UNESCO ano passado, e que hoje pela primeira vez se comemora.
Fica o registo desse acontecimento que não sei se saúdo, ou se passo batido por ele, porque em meu sentimento todos os dias saúdo e comemoro a existência dessa língua, minha paixão, meu tesouro, minha ferramenta e meu desassossego, rude instrumento de beleza e exigência, que requer culto e peleja, para que nela nos expressemos bem. Muitos literatos e afins declaram-se encantados de haver um dia para a nossa língua, fico a questionar-me: Verão eles bem das coisas? Dirão eles bem as coisas?
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