domingo, 7 de julho de 2019

PARATY PATRIMÔNIO MUNDIAL.





Lembro-me bem, foi há muito tempo, nos anos 80, fui à correr para Paraty, participar no evento promovido pela Fundação Roberto Marinho, onde se analisava, a todos os níveis, o patrimônio de Paraty, sua importância ecológica, histórica, urbana, etc... e as ameaças que pesavam sobre esse patrimônio, com a presença, para debater e votar, de 'todos' os lados envolvidos no processo, desde a população, até os turistas proprietários lá, ou apaixonados por Paraty, passando por todas as agências governamentais nos diversos setores.

Fui sozinho, porque das associações de que fazia parte, ninguém quis investir quatro dias de suas vidas, nem se deslocar tão longe, algo em torno de 250 quilômetros, tanto de São Paulo, como do Rio, ficando à meio caminho, tão perto e tão longe, segundo a perspectiva que se queira tomar, seguindo pela BR-101, a estrada que asfaltou quase duzentas praias para ser construída, o supra-sumo da estupidez, e onde, no lugar da pedra podre, Itaorna em tupi, construíram três usinas atômicas, à distância mais efetiva, vale dizer mais próxima, dos dois maiores aglomerados humanos do continente sul americano, como que para se assegurarem bem de que, se houver uma catástrofe nuclear, a mortandade seja a maior possível.

Havia uma guerra instaurada quando lá cheguei, para abafar o que se pretendia para Paraty, a tentativa de transformar a pequena vila, num grande polo turístico com o dinheiro canadense. A história era a seguinte, a Brascan, uma empresa canadense, vendera a Light ao governo por 99 milhões de dólares, uma enorme fortuna à época, muitos bilhões hoje, com a atualização monetária, vendera no ano anterior ao de terminar a concessão, um século para acabar a concessão, e no último ano, quando vão tera empresa de graça. resolvem comprá-la, uma negociata, que para querer justificar o injustificável, e tentar abrandar o impacto do absurdo, tinha um ponto específico, o dinheiro pago indevidamente à Brascan, pois era só aguardar mais um ano e a concessão terminaria, com o retorno da Light às mãos brasileiras, sem ter custado nada, pois a concessão não seria renovada, então os 99 milhões deveriam ficar no Brasil. Pois, talvez para dar uma ideia de legalidade, o ponto do contrato de compra da Light que quase destruiu Paraty, era que os 99 milhões tinham de ser reinvestido em negócios em território brasileiro.

E assim foi, a Brascan, por via de uma sua subsidiária para empreendimentos na América do Sul, a ADELA-Brascan, onde ADELA quer dizer em espanhol: Asociación de Desarollo de LatinoAmerica, adquiriu as terras dos laranjeiros, três praias belíssimas, com quilômetros de extensão, onde essas populações caboclas viviam desde tempos sem memória, com suas famílias, nas franjas da floresta atlântica à beira-mar, e que, por força de ações judiciais das quais não se puderam defender, estavam sendo despejados, para darem lugar a um enorme projeto turístico-imobiliário, de bilhões, num dos paraísos que existem nesse mundo, onde, ademais, iriam cometer um enorme crime ecológico com a eliminação da mata-atlântica à beira-mar.

Os despejos eram feitos mano-militarmente, com a sucessiva derrubada das casas dos laranjeiros (Seu nome se deve à praia onde havia maior concentração de população, também ditos trindadeiros, porque a localidade chama-se Trindade.) uma maldade contra populações indefesas, que desorientadas e sem recursos, não tinham para onde ir, vendo acabar um modelo de vida multi-secular, e que eram expulsas de suas casas, as mesmas onde os avós de seus avós haviam nascidos, mas das quais não tinham documentos, porque nunca imaginaram que não fossem deles as casas que sempre foram de seus pais.

Indignado com isso, sigo para Paraty, mas não tenho ideia do tamanho da batalha que me aguarda. Lá chegado, ponho-me à frente da pouca resistência ao projeto megalômano de urbanização turística da ADELA-Brascan. Sozinho contra tudo e contra todos. Que posso fazer, mais que denunciar? Afinal estão presentes todos os órgãos de comunicação do país, poderá resultar. Começo a contrapor, com elegância e respeito pela miserável Brascan, sem ofensas ou agressões, para passar a ideia da seriedade do que estamos discutindo, que afinal iria ser votado pela comunidade paratiense, só me atendo a questões concretas, e às suas consequências funestas para a região.

Começaram pelas questões ecológicas, onde certamente me pude desvencilhar com gáudio, por ser minha zona de conforto. (Tudo pode ser ouvido nas gravações da Fundação Roberto Marinho, que registou todo o congresso.) Lembro-me de entender que havia saído vitorioso, quando uma moça, belíssima, da mais alta-burguesia paulistana, que os pais tinham mansão em Paraty, eu não tinha onde dormir sequer, me veio oferecer uma série de postais e outros impressos sobre a região, de uma entidade de defesa do meio-ambiente em que eles participavam em São Paulo, que estava presente como convidada, eu não era mais que um intruso. Para o dia seguinte estavam marcadas as questões jurídicas, perguntei quem iria debater pelo lado do povo? A resposta foi. Ninguém! Não podia permitir isso, mas, evidentemente, questionava-me como poderia contrapor as argumentações dos maiores advogados do país sem elementos para o feito, e sem cair no ridículo, e mesmo sem destruir tudo que havia alcançado no primeiro dia. Desesperançado, mas não descoroçoado, fui jantar, porque para participar de todos os debates, nem almoçado tinha. Ao jantar disseram-me que um dos responsáveis por um dos projetos da Brascan, que trabalhava num os maiores escritórios de advocacia do país, era sensível à causa da preservação ecológica da Mata-Atlântica. Sem o conhecer, fui ter com ele, pedindo que interviesse nos debates, se não para defender, cingindo-se às questões jurídicas, os interesses da população de Paraty, com ênfase à questão dos trindadeiros despejados, pelo menos para lhes reconhecer direitos. Ele era um advogado ainda novo, com boa cara, e me disse que seu pai era um dos sócios do escritório que promovia os despejos, contratado pela Brascan, que ele não iria poder defender semelhante causa, apesar de sensível a ela, porque estaria traindo o pai, e perderia o emprego. Saí da mesa do jantar sem saber que fazer.

Passando por um dos bares da vila, dirigia-me para uma modesta pensão, onde me informaram haver ainda alojamento, a cidade estava cheia, abarrotada, e lá também tinha preços que eu poderia suportar, pois os hotéis não eram para o meu bolso, e estavam na maioria ocupados por toda aquela gente que se deslocara a Paraty, para além dos que tinham residência lá, lotando os hotéis. Pois nesse caminho, acenaram-me do tal bar, entre o grupo dos filhos de milionários que me acenava, estava a beldade que me havia presenteado os postais e impressos. Fui ter com eles, depois de alguma conversa banal, onde tentavam descobrir quem eu era, aquela avis rara que havia pousado em Paraty, disse-lhes que não havia ninguém inscrito para debater com os advogados no dia seguinte, perguntando se algum deles não se queria apresentar? Alguns até eram estudantes de Direito, e sugeri que recolhessem informação telefonando aos importantes advogados de seu círculo de amizade, para constituírem uma argumentação possível para o dia seguinte. Disseram-me que iriam ver, mas que agora, e era visível, estavam se divertindo. Senti na pele com toda a clareza, o pedaço de coisa estranha que eu era, sempre fui, e felizmente ainda sou, pois é claro que preferia estar ali com aquela gente bonita, rindo, cantando, namorando, sobretudo com a menina dos postais, do que estar a me dilacerar com os problemas das populações caboclas, que no dia seguinte iriam ver seu despejo consumado.

Era mais forte do que eu, e fui embora recolher-me, porque no outro dia os trabalhos começavam cedo, e já era tarde. Fazia calor, dormia com a janela aberta, no quarto estreito da pensão, no qual a cama ficava bem debaixo da janela. Fui acordado pelo abanar que me fazia o advogado do escritório que despejava os trindadeiros. Acordado, vi que estávamos no meio da noite, altas horas da madrugada. Perguntei o que queria, ele vinha com uns papéis debaixo do braço, e uma cara assustada. Disse que me vinha dar os dados do que eu deveria dizer no dia seguinte. Disse-lhe que não me havia inscrito. Ao que ele contestou que, como ninguém se havia inscrito, poderia inscrever-me na própria hora do debate, que seria aceito. Passou o resto da noite mostrando que os despejos eram ilegais, porque, entre outras razões,  os documentos de propriedade originais, muito antigos, existentes no Cartório de Angra dos Reis, mencionavam já as ocupações pelas populações caboclas, o que inviabilizava a hipótese de serem invasões, alegação que subsidiava os despejamentos, tornando os mesmos inválidos. O advogado ex-ofício designado para a defesa dos trindadeiros, estava presente, mas não ia falar. Fui eu mesmo que tive de promover a defesa das populações da beira-mar, como a população dos manguezais, bem como o próprio eco-sistema do mangue, tudo ameaçadas pela ação da Brascan.
Corria bem o debate, tendo ficado claro o direito de posse, que se não convertera em propriedade, há muitos anos, pela falta de necessidade, e  de recursos, por parte das populações envolvidas, bem como por esse Direito ser reconhecido universalmente desde sempre por todos. Como tinha ficado bem clara a linha de defesa, dirijo-me para o advogado dos despejados e pergunto o que ele iria fazer, porque eu não sou advogado, disse. Ele não podendo evitar, levantou-se e disse que iria seguir a linha de defesa que eu estabelecera, e que, já mesmo na semana próxima, iria arguir a nulidade do processo por estar baseado em afirmações falsas, e em documentação incompleta ou truncada, pois a Brascam havia apresentado o documento original, suprimindo as páginas onde aparecia a referência às habitações dos habitantes das terras em disputa. Havia ganho o segundo debate!

Como sou absolutamente crente, dispus-me a inscrever-me para o terceiro debate que versava sobre patrimônio, apesar de não dispor de nenhum dado, entendera que Deus me havia escolhido para aquela missão, e que as coisas acabariam por se compor, que apareceria um especialista em patrimônio que me orientaria, como sucedera dom o advogado na noite anterior. Grande engano!

No dia seguinte, como ninguém aparecera, fui como Pilatos para o credo, ou mesmo como o Cristo para ser chicoteado, não fazia mal, só não queria destruir o que havia alcançado nos dois dias anteriores, com alguma argumentação horrível no debate sobre patrimônio edificado. Quando cheguei ao Salão de debate, a Fundação Roberto Marinho estava propondo que os técnicos governamentais do IPHAN (Instituo Histórico e Artístico Nacional) fizessem uma exposição pormenorizada de sua ação na Vila de Paraty. Boa, era só prestar atenção e ver as brechas. Assim fiz, e pude contra-argumentar todas as ações que poderiam afetar o importantíssimo patrimônio histórico de Paraty, pois entendia que era um conjunto único, que devera ser preservado na totalidade, não devendo ser permitida qualquer alteração da traça que vinha do XVII e XVII, sobretudo aquela que, para além do espaço da vila, uma vez que havia outro conjunto que se materializava em antigas fazendas sendo tudo junto o patrimônio em questão, no que os técnicos do IPHAN tiveram de concordar, o que incluía também a Estrada Paraty-Cunha, a antiga Estrada Real do Caminho do Ouro, ou o caminho velho, por onde o ouro de Minas vinha ter ao mar, para ser embarcado para Portugal, e que pretendiam transformar em auto-estrada. Fabuloso patrimônio construído em pedras que contam a história do Brasil colonial no tempo do Ciclo do ouro. Lá pude ganhar, com a concordância dos técnicos governamentais, a preservação da Estrada, que se transformaria em Parque, (Penso que é a única estrada parque do mundo.) a Estrada Parque Paraty-Cunha, restringindo, desse modo, em muito, os planos da Brascan.

Meus caros leitores, desde aí entendi que quando há uma vontade, as coisas podem melhorar, desde que combatamos com intensidade, que nos esforcemos para que o Bem vença, tudo é possível. As energias positivas irão conspirar a nosso favor. Este tem sido o empenho de minha vida. E, devo lembrar,  hoje todos vamos ter de exercer essa vontade, porque o planeta está ameaçado, à conta de milhões de destruições como a que a ADELA-Brascan pretendia fazer em Paraty.
Por outro lado encanto-me de ver Paraty reconhecida como Patrimônio Mundial, porque é por todas as razões que defendia então: é por suas características históricas, patrimoniais, arquitetônicas, ecológicas, e humanas, dos aglomerados preservados, etc.. que são as mesmas razões que justificaram agora a escolha da vila como patrimônio de todo o mundo, neste reconhecimento que alcançou. Enfim! Deus seja louvado!





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