segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A ideia, a teia e o ideal - António Guterres.




Em todas as coisas há um ideia que as concebe, e, para além de sua existência visível estabelecem-se conexões invisíveis que conformam uma verdadeira teia intrincada de relações não explicitas, que são muitas vezes um emaranhado mais poderoso do que o declarado, do que o visível, do que o explicitado. É o oculto, e o poder do oculto é muito vasto.

A contrapor a realidade dura e intrincada existe, para quem o tem, o ideal, não só como ator, incansável na plenitude da ação, mas também concebido como meta absoluta para quem deseja que o mundo seja melhor, mais aperfeiçoado, mais em consonância com as verdadeiras necessidade das pessoas, e, consequentemente, mais afastado da teia oculta que existe só para servir aos que a tramaram.

Essa constatação divide as pessoas em três diferentes grupos: 1. os homens da teia,  2. os que não fazem parte dela e não sabem se opor a ela, ou por ignorância de como funcionam efetivamente as coisas, ou por incapacidade, ou por conivência tácita, e 3. os que têm outra orientação, e que, na maioria das vezes, se irão chocar com os interesses da teia, essa que ao longo do tempo aprendeu que não deve impor irredutivelmente sua vontade e interesses, evitando grande conflitualidade e exposição indesejáveis, porque o conflito que daí advirá pode levar a confrontos de mui difícil solução, e, com o tempo, a teia aprendeu também a utilizar  a máxima que crivou Lampedusa na boca do Príncipe Falconeri.

Os primeiros têm a orientação que teceu a teia e nela operam, os segundos são as vítimas da teia, involuntários cúmplices do processo que essa desenvolve, insetos capturados por ela. Já os terceiros, grupo mais restrito que se opõe ao status quo criado pela teia, querem mudanças e avanços sociais, económicos, humanitários, quase sempre contra os interesses da teia . Esse último grupo é tocado por um sentimento e lógica que conformam aquilo a que chamamos ideologia. Os verdadeiros idealistas são poucos, ainda que muitos convirjam para esse grupo, para logo serem esmagados pelo poder da teia, ou aprisionados por ela, e, tendo pouca força para se oporem, irão logo tomar parte no segundo grupo, pronto convindo com a preponderância da teia, e deixando o barco correr.

Os que se opõe por algum tempo à teia são bons, os que se opõe longo tempo à teia são muito bons, e só os que se opõe por toda vida são os imprescindíveis, porque o poder da teia, que sempre existirá, exige a ação de homens convictos, de boa fé, que saibam fazer oposição a seu imenso poder, para poderem contrapor alguma humanidade aos processos de um mundo tão desumano.

António Guterres provou ser desse terceiro grupo, soube deixar o poder quando a teia buscava oprimi-lo ou captura-lo, soube desempenhar funções valendo-se das máximas da teia, para jogar com elas, soube preservar seu ideal, de base puramente cristã, soube caminhar na teia sem ficar preso em seu visgo, jogando com os diferentes fios, jogando com os poderes anti-teia que se compuseram, também secretamente alguns, em combatentes ao desmesurado poder da estrutura, digamos superestrutura, do grande enredo, da grande intriga, a teia superveniente.

Este homem foi agora posto no olho do furacão, por obra de Deus, assim cremos, obra que deverá levar a cabo como homem de fé que é, obra que o impulsiona, mas que o furacão da teia tem por interesse esmagar, e que no enfrentamento direto é morte certa, que só a habilidade, o poder de convencimento, o saber jogar com a força das palavras que souber escolher, das imagens que criar,  juntamente com o poder dos apoios que conseguir conquistar, com os contrapontos que a realidade estabelecer, no confronto de interesses tão diversos, que tantas vezes inconsequentemente liberam imenso poder que se perdem em si mesmos, que se esvaziam ou se anulam em diversas hipóteses, e que só um habilidoso o conseguirá utilizar em proveito da boa seara, estabelecendo a única situação capaz de fazer a teia recuar e ceder, um prenúncio de confronto que possa fazê-la perder parte do poder que já detém, para conservar o resto.

Guterres é um hábil, consciente disso tudo, imbuído de um ideal, movido por convicções profundas, apoiado na obra de Deus que, a seu turno, não lhe recusará apoio e proteção, combatente solitário que o destino colocou, como disse, no olho do furacão, numa superestrutura que atende pela sigla ONU, que ele sabe que tem pouco, ou nenhum poder em si mesma, que sabe desprestigiada, sabe joguete na mão da teia, e que ele terá de retirar da sombra tentacular de sua miserável condição de ser sombra, para que, com algum brilho possa angariar respeito, possa jogar algumas cartadas sem ser aprisionado pelo imenso poder de retenção da teia. E o terá de fazer com o único poder de que dispõe: o frágil, mas imenso, poder das ideias, sempre que as conseguir transformar em palavras, ou imagens certas, nas horas oportunas.

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