Alfredo Do Coutto 14/2/ 1921 - 14/2/2021.
Não pode ser bom quem for filho de um homem mau. Meu pai era um homem bom, simples, sem grandes sonhos, sem grandes ambições... Eu que ao contrário quis mudar o mundo, devo ser mau, desta maldade de quem tem vontade. Ter vontade é sempre algo muito mau, ainda que seja para os outros.
Certamente crerão na distorção da visão de um filho a fazer um retrato de seu pai. Muito assim deve ser, picassiano. Tentarei evitar ao máximo que assim seja, os que o conheceram avaliarão da certeza de minhas palavras, entre aqueles que as lerem, talvez ninguém. Mais além da particularidade de ser meu pai, evoco a história de um homem nascido no primeiro quartel do século passado, nascido entre as duas grandes guerras num país que se consolidava como república emergente, e que há uma geração, quando nasceu meu pai, (há 32 anos portanto) deixara de ser uma monarquia, para ser uma confusa república, este país de todas as belezas chamado Brasil.
Meu pai foi professor de gerações de alunos nos Colégios de Niterói (Brasil, Gay-Lussac, no Liceu Nilo Peçanha, etc...) que estudaram com ele biologia, ou na Universidade Federal Fluminense, médico, último filho de um pai inglês, que se casou com uma brasileira cabocla amulatada, Elvira Rosa de seu nome, o dele era Frederich, e teve com ela mais de 13 filhos antes de meu pai, viviam numa enorme chácara no Barreto, com casa e cais, de onde meu avô pegava sua chalupa para ir para o Rio de Janeiro classificar e vender café. Era outro mundo! Destes 14 filhos, meu pai foi o último. . . havia uma transposição histórica no seio dessa família, posto que na transição que ocorrera ao longo dos nascimentos dos meninos e meninas que a compunham, gerou-se enorme decalagem por força das diferenças de idade, de seus comportamentos, dos sentimentos, das almas, o que gera gente tão diferente uma das outras, que é muito difícil explicar, as voltas do tempo são as voltas da família, voltas, apenas voltas.... Não vale a pena ir por aí.
Tudo que diga para situá-lo e ao Brasil no tempo e no espaço, dirá menos que o poema ao seu cão, posto que a desordem litúrgica dos sentimentos refletidos na memória, são o vazio de um poço sem água, rito de passagem para o infinito. Amei demais meu pai e meu país, como estava enganado.
INOMINADO (he has no name)
Perde-se a palavra, fica a liturgia.
Não me lembro mais o nome do cão, que não conheci, de meu pai
Aquele que devorava busca-pés nas queimas de fogos de artifício nas festas na chácara de meu avô
Era um nome diferente dos nomes que costumeiramente se dão aos cães
Era ventania, vulcão, rajada, algo assim... Não me lembro!
Será melhor desse modo, eu me esquecer, ele já não existe.
Não terei guardado a herança deste nome nessa história, faltei ao compromisso...
Inútil compromisso, é verdade, mas sempre seria outro o título desta poesia.
História na qual o cão maluco engoliu fogo, comeu um buscapé no São João
E ninguém me pode acudir, ninguém mais sabe-lhe o nome, meu único irmão morreu há dois anos,
Também não o saberia!
Mas as perdas verdadeiramente irreparáveis são essas, as do esquecimento
Meu bravo cãozinho, roubei-te a cena, amputei-te a marca!
Das muitas coisas que não guardamos, ou quando, nas quais, a memória nos trai
Resta o rito, que torna-se o signo da suprema traição ao não lembrar.
Tantas vezes fui censurado por ser poeta, mesmo essa palavra, então, queria dizer outra coisa
Minha natureza fiel dissolveu-se em incompreensões
Minha energia aventureira lançou-se no espaço vazio da falta de diálogo
Sem remédio na ânsia vulgar e incontornável de viver...
Late cão!
Estamos em 2021, e eu ainda faço poesia.
Para além das palavras, está a liturgia.
(Beyond the words is liturgy...)
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