sexta-feira, 8 de abril de 2022

Lugar de encontro.

   "A vida é a arte do encontro, malgrado haja tanto desencontro nessa vida."
                                                                                                           
                                                    Vinícius de Morais.

Dos extremos, como nas estações do ano, para o calor e o frio, 'locus horrendus' versus 'locus amoenus' como se demarcava então na visão literária romântica, posto que será com essa visão literária que se consolidará a ideia antiga, consumada no sexto século antes de Cristo, donde teremos o 'testimonii loco', o 'Colletio loco', um 'locus tutum', lugar seguro, o lugar do encontro, posto que com as oferendas das Musas na Grécia antiga, formaram-se coleções de objetos preciosos e exóticos que eram exibidos mediante o pagamento de uma pequena taxa. Pouco depois, no final da época Neobabilônica (530 a.C) a princesa Enigaldi-Nana, filha de Nabonido, com as coleções da dinastia caldeia, que vinham desde Nabucodonosor II, formou o primeiro Museu, entendido como hoje o entendemos, com finalidade eminentemente cultural. Teria de transcorrer mais de um milénio, onze séculos, para voltarmos a valorizar esta ideia - museu - lugar de encontro.

'Collectio loco'.

Essa expressão, que é a forma latina do título escolhida para este artigo, bem como sua introdução via literária, se devem ao fato de que é do coleccionismo que nascem os museus, mesmos os coleccionismos involuntários, como ocorre tantas vezes com as peças que deixaram de ter uso corrente e permaneceram guardadas nas cafuas das famílias e instituições. E tanto é, o que quer significar aqui 'encontro', exatamente como está também na raiz da palavra coleção, como temos as Musas, as nove filhas de Zeus com a Memória [Mnemósine] (e que eram as das Poesias, épica e lírica, a da História, as da tragédia e da comédia, as das Músicas, a corrente e a sacra, a da Dança, e a da Astronomia e Astrologia) Calíope, Erato, Clío, Melpomêne, Tália, Euterpe, Polímia, Terpsicore, e Urânia respectivamente, que deram origem com suas coleções de objetos preciosos ao termo Museu, para o local da exposição dos mesmos.

E é deste encontro que Vos quero falar, posto que o lugar de encontro que desejo referir aqui e agora, é o Museu da Misericórdia de Cascais que se inaugura neste dez de Abril de 2022, data solene, visto que é enfática e infunde respeito a um só tempo, daí sua solenidade, a que na magia do tempo restará por testemunho, capsula do tempo, universo de referências, razão nossa, posto que nos define, razão de memória, com M grande, da mãe das Musas, que reunem todas as artes, visto que sem Arte, a vida é nada. A mim, que escrevo esse texto, cabe uma mui pequenina responsabilidade por esse Museu vir a existir, cuja Missão é a da Misericórdia, assumida em sua plenitude pela sua Provedora, Dra. Isabel Miguéns de Almeida Bouças, na realização das obras que a definem, tanto as corporais, como as espirituais, que aqui permanecerão no testemunho de sua realização, e cujo incumbente é, por sua visão maior, o Presidente da Câmara, Dr. Carlos Manuel Lavrador de Jesus Carreiras, que com sua simplicidade e objetividade, tem assumido a lúcida visão do futuro mister.

Futuro necessário.

Na continuidade do passado é que se constrói o futuro, uma vez que ninguém pode partir do nada, posto que quando todos aqui chegamos havia já uma realidade estabelecida, ignorá-la é desmerecer a História (Clio) e a Memória (Mnemósine, sua mãe). Assumir esse passado é a grande obra necessária ao futuro, que em si mesma se alimenta, posto que por preservá-lo criamos o que virá, o testemunho rico, o registo da História que remanesce após a vida ter acontecido em cada sítio, preservar o conhecimento dessa história, é criar o futuro necessário. Para o turismo, por exemplo, mais frequência, mais negócios, que ninguém vem a uma terra onde não há o que ver. Para os da terra, um outro exemplo, é o de seu passado, o caminho que estabelece seu auto-respeito, seu patriotismo, e seu orgulho. Infelizmente pouca gente entende isso, mas o futuro, esse que é necessário, revelará que assim é.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

PODEM TANTO AS PALAVRAS: 12/3/1572 - 12/3/ 2022

Quatro séculos e meio d'Os Lusíadas! Editado no doze de março há 450 anos, esta impressionante história de uma epopéia comum, a que hoje, mais certamente, intitularíamos 'Os portugueses', essa gente que protagoniza o mais de milhar e cento de estrofes que vão contando sua história, a História de Portugal como nação. A algum outro povo ocorreu contar sua história desse modo? O livro que foi escrito por várias terras por meio mundo, em condições adversas para o autor, sendo que a que mais me emociona é a da gruta de Macau, entre os dois penedos onde se abrigava o gigante escritor (1), não é incrível que um homem em tão difíceis condições, pulse seu gênio em profunada erudição do saber de seu tempo, com o conhecimento perfeito da historia de seu povo, numa rigidez estrutural rigorosíssima, em oitavas decassilábicas sempre no mesmo esquema difícil de rimar (as seis primeiras cruzadas e as duas últimas emparelhadas) ao longo dessas 1102 estrofes? Sr. Luís Vaz, que ousadia? Que coragem!
Para que lado olha o pelicano? Conto-Vos já o porque desse reparo ao pelicano que encima a capa, mas antes falemos do que significa o pelicano, o que se vê bem ao meio da referida capa das primeiras edições d'Os Lusíadas. Quanto a história que conduz a obra, é a de Vasco da Gama, escolhida pelo poeta das gentes portuguesas, seu povo, ao qual admira e glorifica, que, ao escolher esse fio condutor, convidando-nos à viagem, o fez porque essa era a inigualável obra dos homens de seu tempo, desde o grumete desconhecido ao rei que, à época da publicação, este outro não era se não o menino Sebastião, que em seu sonho de grandeza, se pudera haver maior que a já realizada (2), e em quem termina a dinastia do Pelicano, apesar dos dois seguintes sucessores desta linhagem, era já o fim, e o glorioso Portugal iría acabar por ser espanhol durante seis décadas. Aviz, a do primeiro João de Boa Memória, que por bastardia do cruel primeiro Pedro, criara essa nova dinastia, uma vez que o formoso fora infeliz, tendo rasgado o documento de Alcoutim apaixonado por uma trasmontana venenosa que roubara ao marido, anulando seu casamento. Com a morte do rei D.Fernando a oportunista Leonor é regente, e com seu amante indignou toda gente, pondo fim ao período afonsino,eis que então viría Aviz, com Dom João, o primeiro, que, casando-se com a princesa inglesa, mãe da "ínclita geração", a Lancastre da rosa vermelha e do pelicano, inaugura a nova dinastia. O pelicano em sua piedade, como o chamam, pois que bica o próprio peito para com o sangue alimentar aos filhotes, torna-se o símbolo ingente desta família. Essa a tradição que começara com Elizabth I de Inglaterra, como se pode ver em seu retrato de circa de 1575, atribuído a Nicholas Hiliard, hoje na Walker Galery. Elizabeth que foi a última Tudor, ou seja York e Lancaster ao mesmo tempo. Esse é pois o pelicano em sua piedade na capa da primeira edição d'Os Lusíadas. A edição de António Gonçalves de Lisboa em 1571, que é a primeira, na época em que Elizabeth reinava em Inglaterra, e um descendente de D. Felipa de Lancaster em Portugal, portanto nada mais apropriado que lembrar o pelicano, posto que era com esse sangue que começara a nova dinastia, a do João, o irmão bastardo d'O Formoso, em quem terminara a primeira dinastia portuguesa. Esta edição teve sucessivas reimpressões, e o pelicano que na primeira aparece voltado à esquerda, nas seguintes olha à direita, mas são todas igualmente raras, posto que só se conhecem 34 exemplares sobreviventes. A épica camoniana. Batalhas e feitos heróicas sobejavam para serem cantados, e os iam sendo esparsamente, loas diversas narrando momentos gloriosos nunca faltaram (3), concertá-los numa narrativa única e sequenciada onde o herói multiforme e multifário (4) emergisse com uma identidade una e absoluta a partir de uma propositura universal, que, sincrética, apresentasse seu caminho traçado e trilhado como via solitária na qual sua decisiva intenção fosse o forjar-se, e o amalgamar sua existência na própria senda de existir (5). Onde o pequeno se torna grande, e o trivial, inusitado. Este o feito alcançado nestes versos, que de seu tempo, eternizaram-se. 'PACTUM'. "Os Lusíadas" trazem consigo uma convenção implícita, a da portugalidade, não patriótica somente, mas universal, por cometer a transgressão da especificidade lusitana, no congraçamento (pactum em latim) que extrapola os liames do tecido com o qual fabrica sua conjuração, que é mais que trama ou narrativa, indo compor este elemento de unidade, que segue bravamente sua senda a caminho do meio milênio, em seu continuado trabalho cívico, sina de maravilha. Podem tanto as palavras! (1) Os penedos no outeiro de Patane, conforme a tradição indicam dois poemas da Lírica: "Sustenta meu viver uã esperança" e "Onde acharei lugar tão apartado". (2) Como está na estrofe 45 do segundo Canto. (3) Como se pode ver alguns exemplos desta poesia épica recolhida no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516). (4) Hoje, diriam, mais credivelmente, multipolar, termo agora em uso nos meios diplomáticos internacionais. (5) Como fica claro nas estrofes 2 do Canto I, 44 do Canto II, 3 do Canto VII, que destaco entre outras.