quinta-feira, 28 de setembro de 2023

"ELES ESTÃO A MATAR-NOS"

Diz um cartaz. Tecnicamente não estão. A resposta climática da Natureza aos seus malfeitos, sim. Entretanto dizer desta maneira é mais direto e compreensível, uma vez que por si mesma a Natureza não faria a série de desastres, como ora acontecem, se não tivesse sido atacada, como foi. Portanto ELES, os que atacam diariamente a Natureza, ESTÃO A MATAR-NOS. E quem os pode impedir pouco faz. Os governos estão pensando em outras coisas.

A REAÇÃO e A leniência dos poderes.

Os governos estão protelando sem horizonte medidas que deviam ter sido implementadas há muitos anos, atuando na defesa de interesses que mascaram sob a capa das dificuldades administrativas, e nunca revelam o que pretendem com esses atrasos das medidas que clamam urgência. É um fenômeno mundial, assim como a natureza humana, sua ganância, seus desatinos. Os Acordos de Paris estão sendo descumpridos sistematicamente por ser implementados, os governos mantendo-se pouco operantes, como iriam admitir isto, se é de uma gravidade muito forte? Além do mais com as manifestações dos problemas ambientais ocorrendo em todo lado, sobremaneira as de cunho climático, violentas e assassinas como são, por isso os governos preferem falar de um alargamento dos prazos estabelecidos, de 2030 para 2035 por exemplo, para manterem os motores a combustão por mais meia década. As cinco irmãs petrolíferas, mais suas primas, como a ARAMCO, esse monstro com receita de mais de 535 bilhões de dólares ano passado, superior á receita da maioria dos Estados do planeta, não iriam ficar imóveis e verem seu negócio, o mais poluente do planeta, mas o mais lucrativo e poderoso também, ser diminuído, sem nada fazerem. Aí está sua resposta: mais cinco anos de poluição pro futuro. Porque este alargamento é sobre o prazo do fim da produção de motores a combustão, não sobre sua utilização. É uma VERGONHA a falta de responsabilidade dos governos face ao que já está acontecendo. A falta de consciência de governantes, com Rishi Sunak, em prorrogar este prazo revela uma total insensibilidade ao que se passa, e ao que virá muito em breve, ou uma imensa sensibilidade a outros apelos. Durante todos estes longos anos de minha luta ecológica, mais de cinquenta, tentei sempre convencer pela argumentação, com dados científicos. É facil para qualquer um defender o respeito à Lei e a Ordem, uma vez que ninguém gosta de violência. OK, mas eu estou defendendo meios de ação ativo para evitar a catástrofe que está a nossa frente; mesmo velho e desgastado como estou, ainda encontrarei forças para buscar outras vias. Dêem-me bolas de tinta!

Sem plano B.

Por isso os jovens, os que irão viver no futuro, reagem, manifestam-se, atiram tinta às paredes e às pessoas, procurando abrir as mentalidades, mas os interesses e o poder das pressões e do dinheiro mantêm o status-quo. Não importando os bilhões em prejuízo que causam, nada importa, nem as vidas humanas que a poluição que geram mata todos os dias. Parece que teremos que indagar ao mundo como Miranda n'A Tempestade de Shakespeare: "O brave New World-That has such people in't " Para querermos responder como Coriolano n'O Corilano, ao virar as costas para Roma: “Há um mundo noutro lugar”. Só que neste caso não há.

Não há opção. Não há mundo alem deste superaquecido que geramos. E enganam-se os climatologistas, o aquecimento da água dos oceanos não é conjuntural, é estrutural também, porque os oceanos estão tentando resolver o problema do aquecimento. ESTREMOS COMPOSTOS -

SECA NA AMAZÔNIA.

Quem conhece a Amazônia sabe que aquele ambiente da floresta superúmida é o mundo da água, a água que chove, a que corre nos rios, e alaga tudo, imensos e numerosos rios que estão em toda parte, e a água que está guardada, presa, na vegetação; assim ninguém pode imaginar que possa haver seca na Amazônia, seria o mesmo que nevar no Saara. Pois está acontecendo. Os níveis de desmatamento atingiram tal grau que a resposta ambiental aí está, SECA. O mais grave é que nada disso impedirá a loucura dos homens, que continuarão a desmatar e a poluir.

O TERCEIRO PODER.

Esgotadas as vias dos poderes sob a direta ação do(s) povo(s), estes povos que em Democracia são os Senhores de seus países, posto que apesar da vontade do povo, os seus prepostos dos legislativos são inoperantes em praticamente todos os países, e os Executivos são sensíveis a outros apelos que os têm mantidos reféns dos poderosos interesses que poluem o mundo, restou, no tripé institucional, o poder Judiciário, O TERCEIRO, que será posto à prova, por obra de seis jovens portugueses, uma vez que está agora a ser chamado ao terreno das decisões do futuro da Humanidade, por uma ação que estes impetraram, para decidir da responsabilidade dos governos nos diferentes países sobre as medidas a serem tomadas para prevenirmos os desastres climáticos que nos estão atingindo. Resta-nos esperar que haja uma decisão que obrigue aos países agirem, e rapidamente. Antes que as bolas de tinta lançadas em paredes e pessoas se transformem em bolas de chumbo, posto que, acuadas e sem outra opção, as populações, vendo descumprida suas vontades expressas eleitoralmente, se vejam obrigadas a agir com violência. Eu previ, quando participei da RIO-92, que, com os interesses em jogo, não se alcançaria impor as medidas misteres a evitar a catástrofe que se anunciava, e que agora, trinta anos depois, está aí a matar muita gente com água, vento, fogo, fome, frio e calor. Disseram-me então que ninguém, menos ainda os governantes, iam ser malucos de caminharem em direção ao precipício. Pois caminham inexoravelmente. É muito dinheiro que está em jogo. E, como disse uma vez um presidente do IBAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis: "O mundo vai ser uma enorme bola careca, como afirmam os cientistas, porque que eu vou me preocupar, se então já não estarei mais aqui?" Com essas mentalidades imperando, só nos resta dizer: ELES ESTÃO A MATAR-NOS. E vamos ter de lutar para não morrermos todos.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Neruda em Niterói.

Vivia na rua Britto num velho casarão de fazenda, que fora outrora sede das atividades de agricultura e pecuária que ali se desenvolveram pelo XVIII e XI; para lá da restinga que se derramava até a praia ao meio do Saco de São Francisco, onde, nos finais do XVI, o apóstolo do Brasil, hoje santo, construiu uma igrejinha ao Xavier, marca do tempo de Charitas, quando os Temiminós dominavam a região, e seu chefe guerreiro, assumiu a causa portuguesa contra os franceses invasores, tornando-se em Martim Afonso de Sousa ao cacique Ararigboia. Do 1567 da reconquista da Guanabara ao 1572, da fundação da pequenina igreja, então capela, por Anchieta, nos seus tempos fluminenses, é época de lutas com os Tamoios. Com Anchieta tendo instalado a capela no pequeno morro no caminho que segue para Jurujuba, sobranceira à planície conformada pelo imenso areal e vigilante ao mar, dá-se o povoamento da região. No outro extremo da planície fica a propriedade que eu frequentava quase diariamente em minha adolescência, o casarão de paredes de taipa, com seu chão de tábuas corridas, que rangiam ao pisarmos, tendo então entrada pelo vasto salão do fundo da habitação, posto que a principal havia perdido o acesso fácil pelas vendas sucessivas dos terrenos envolventes ao casarão, que com os valores obtidos é que se mantinham as entradas de dinheiro para fazer face às despesas da vida do Senhor da casa, Carlos Vasconcellos Rodrigues de Britto, meu saudoso Kalika, a quem devo uma das vias de minha formação intelectual. Nesta casa li os melhores romances, a melhor poesia, descuti a mais fina política, analisei as nuances históricas, e me empreguinei dos mais nobres valores. Viva Kalika Animi plenus. Foi nesse cenário que, justo no ano em que eu nasci, recebeu então o Kalika a visita de Pablo Neruda, num almoço do qual, quando já me entendia por gente e passei a frequantar a casa, ainda dele se comentava. Que fulgurante presença haveria de ter o imenso poeta chileno, para ser lembrado por todos, inclusive pelo António, o Jardineiro da propriedade, que até do cheiro do fumo do seu cachimbo se lembrava. Neruda leu nessa tarde a sua Oda a Rio de Janeiro, que compusera em sua primeira visita ao Rio, tendo voltado muitas vezes ao Brasil onde era amigo dos nossos maiores, ode da qual trago aqui uma de suas versões em Português: Ode ao Rio de Janeiro Rio de Janeiro, a água é a tua bandeira, agita as suas cores, sopra e soa no vento, cidade, náiade negra, de claridade sem fim, de fervente sombra, de pedra com espuma é o teu tecido, o lúcido balanço da tua rede marinha, o azul movimento dos teus pés arenosos, o aceso ramo dos teus olhos. Rio, Rio de Janeiro, os gigantes salpicaram a tua estátua com pontos de pimenta, deixaram na tua boca lombos do mar, nadadeiras pertubadoramente indolentes, promontórios da fertilidade,tetas da água, declives de granito, lábios de ouro, e entre a pedra quebrada o sol marinho iluminando espumas estreladas. O poeta mostrou grande interesse num Corrupião, tanto por sua beleza como por ficar impressionado que o pássaro cantasse o começo do Hino Nacional brasileiro, e se passeasse pelas costas dos visitantes. Esse corrupião, sofré em espanhol, era paixão do dono da casa, assim como fora o seu. Visto que lhe fora oferecido um idêntico dois anos antes em Goiás, onde há, havia, boa ocorrência da espécie. Chegou morto a Santiago, e motivou a Ode que se segue: Oda al pájaro sofré Te enterré en el jardin: una fosa minúscula como una mano abierta, tierra austral, tierra fría, fue cubriendo tu plumaje, los rayos amarillos, los relámpagos negros de tu cuerpo apagado. De la fértil Goiania, te enviaron encerrado. No podías. Te fuiste. En la jaula con las pequeñas patas tiesas, como agarradas a una rama invisible, muerto, un pobre atado de plumas extinguidas, lejos de los fuegos natales, de la madre espesura, en tierra fria lejos. Ave purísima, te conocí vivente, eléctrico, agitado, rumoroso, una flecha fragante era tu cuerpo, por mi brazo y mis hombros anduviste independiente, indómito, negro de piedra negra y polen amarillo. Oh salvaje hermosura, la dirección erguida de tus pasos, en tus ojos la chispa del desafío, pero así como una flor es desafiante, con la entereza de una terrestre integridad, colmado como un racimo, inquieto como un descubridor, seguro de su débil arrogancia. Hice mal, al otoño que comienza en mi patria, a las hojas que ahora desfallecen y se caen, al viento Sur, galvánico, a los árboles duros, a las hojas que tú no conocías, te traje, hice viajar tu orgullo a otro sol ceniciento lejos del tuyo quemante como cítara escarlata, y cuando al aeródromo metálico tu jaula descendió, ya no tenías la majestad del viento, ya estabas despojado de la luz cenital que te cubría, ya eras una pluma de la muerte, y luego, en mi casa, fue tu mirada última a mi rostro, el reproche de tu mirada indomable. Entonces, con las alas cerradas, regresaste a tu cielo, al corazón extenso, al fuego verde, a la tierra encendida, a las vertientes, a las enredaderas, a las frutas, al aire, a las estrellas, al sonido secreto de los desconocidos manantiales, a la humedad de las fecundaciones en la selva, regresaste a tu origen, al fulgor amarillo, al pecho oscuro, a la tierra y al cielo de tu patria. Neruda chorou na presença do nosso a perda do seu. Ninguém se esqueceria, nunca, das lágrimas do poeta. Irá ainda mais tarde o poeta se dizer um pássaro, nesta sua verve tão particular. Penso que gostava muito dos pássaros, sobretudo por sua liberdade, essa mesma pela qual ele lutou tanto para que seu povo a tivesse, e que, pela dilatada riqueza do Chile, irá ser sempre foco de cobiça desta e servilismo daquele. A sensibilidade de Neruda projetava o entendimento de coisas muito particulares, desde a diversidade da Natureza, que vem da infância, até a percepção dos outros, com seus universos de sensibilidade muito speciais, como também era o seu. Gostava de ler para os amigos, e recitava frequentemente poemas de outros autores. Dentre os que mais gostava encontra-se este, 'O Defunto', do médico mineiro Pedro Nava, que Neruda considerava o melhor poema da literatura brasileira. O Defunto A Afonso Arinos de Melo Franco Quando morto estiver meu corpo evitem os inúteis disfarces, os disfarces com que os vivos, só por piedade consigo, procuram apagar no Morto o grande castigo da Morte. Não quero caixão de verniz ou os ramalhetes distintos, os superfinos candelabros e as discretas decorações. Eu quero a morte com mau gosto! Dêem-me coroas de pano. Dêem-me as flores de roxo pano, angustiosas flores de pano, enormes coroas maciças, como enormes salva-vidas, com fitas negras pendentes. E descubram bem minha cara: que a vejam bem os amigos. Que a não esqueçam os amigos que ela perturbe os amigos e que lance nos seus espíritos a incerteza, o pavor, o pasmo... E a cada um leve bem nítida a idéia da própria morte. Descubram bem esta cara! Descubram bem estas mãos: Não se esqueçam destas mãos! — Meus amigos! Olhem as mãos! Onde andaram, que fizeram, em que sexos se demoraram seus lábios quirodáctilos? Foram nelas esboçados todos os gestos malditos: até furtos fracassados e interrompidos assassinatos... — Meus amigos! Olhem as mãos que mentiram às vossas mãos... Não se esqueçam: elas fugiram da suprema purificação dos possíveis suicídios... — Meus amigos! Olhem as mãos, as minhas e as vossas mãos! Descubram bem minhas mãos! Descubram todo o meu corpo. Exibam todo o meu corpo e até mesmo do meu corpo as partes excomungadas, as partes sujas sem perdão, que eu esmagava nos sábados e aos domingos renasciam! — Meus amigos! Olhem as partes... Fujam das partes... Das punitivas, malditas partes... — Meus amigos! Arranquem as suas... Esmaguem as suas... Amputem as suas... Eu quero a morte nua, crua, terrífica e habitual, com o seu velório habitual Ah, o seu velório habitual... Não me envolvam num lençol: a franciscana humildade, bem sabeis que não se casa com meu amor pela Carne com meu apego ao Mundo. Eu quero ir de casimira: calça listrada, plastron... com os mais altos colarinhos, com jaquetão com debrum... Dêem-me um terno de ministro ou roupa nova de noivo... E assim, solene e sinistro, quero ser um tal defunto, um morto tão acabado, tão aflitivo e pungente, que a sua lembrança envenene o que restar aos meus amigos de vida sem minha vida. — Meus amigos! Lembrem de mim. Se não de mim, deste morto, deste pobre terrível morto, que vai se deitar para sempre, calçando sapatos novos! Que se vai como se vão os penetras escorraçados, as prostitutas recusadas, os amantes despedidos, como os que saem enxotados e tornariam sem brio a qualquer gesto de chamada. Meus amigos! Tenham pena, senão do morto, ao menos dos dois sapatos do morto! Dos seus incríveis, patéticos sapatos pretos de verniz. Olhem bem estes sapatos, e olhai os vossos também... Rio de Janeiro, 23 julho de 1938. Publicado no livro O Defunto (1967). Esta visita que Vos conto foi a única vez, que se saiba, que Neruda esteve em Niterói, e faço por lembrar, com sua passagem pela cidade onde nasci, o grande poeta, neste 2023, quando em finais do próximo Setembro ir-se-ão completar cinquenta anos de sua morte. À seguir vale a pena ler Vinicius no poema dos três Pablos.