quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

DAS VELHAS PALAVRAS.






Toda palavra é boa. Por pior que seja o que descreve, sua intenção dissente é sempre útil e recorrente. Não diz nada à toa. Toda palavra é boa!

Porém os  modismos, às épocas em que são utilizadas, criam uma ciranda de onde saem muitas vezes estigmatizadas, como se já não prestassem, como se seu tempo tivesse acabado. Escolhamos para exemplo, uma temática muito expressiva e forte, que tem a cada época uma forma muito peculiar e particular de dizer, a dos elogios masculinos feitos às mulheres, a dos ditos piropos.

No meu tempo dizia-se gostosura, meu pai diria mais, peixão, meus filhos dizem mais frontalmente, tesão, a denominar a causa pelo efeito. Entretanto sempre existiram palavras para gabar a beleza feminina, umas mais adequadas, outras menos, sempre a puxarem por uma característica que se destaque. Para suas curvas, violão, peixão, sereia, e, à propósito, este último ressurge agora nas camisetas, impresso como um reclame. Como também as de gabar a sensação desperta pelos seus dentes, pela sua boca, pelos olhos, etcetera, o que mais chamar a atenção. Olha que a palavra reclame, que empreguei, também é démodé, esse galicismo da época em que nossa cultura, tanto no Brasil, como em Portugal, obedecia aos cânones de França. Antiquado será? Na camiseta de uma menina deslumbrante parece actualíssimo. E temos, impregnados dessas designações, grandes escritores, o que demonstra o cunho literário do emprego das expressões, e vem daí o mais delicioso escritor em língua lusa, Eça, o maravilhoso, o fabuloso, o requintado, o saboroso autor, junto com o outro magnífico, Machado, dois autores que qualquer texto seus, será um privilégio nosso poder lê-lo. E voltando aos piropos, na época queirosiana diríamos anjo, celestial, graciosa, angelical, "robusta donzelona", delicadeza, pérola, dependendo do dote físico mais eloquente. Muitas dessas expressões também encontramos usadas por Machado, ou ainda deliciosa, rainha, rainha da noite (Machado, em Helena) ou cigana oblíqua, ou ninfa (Machado em Capitu.) muitos são os epítetos do XIX, época romântica em transição para o realismo, muito rica em expressões, que evoluíram,  e, logo à seguir, teremos beldade, mimosa, curvilínea, violão, pancadão, doçura, belezura, um pedaço, ou em expressão completa, pedaço de mal caminho, ou numa forma outra de dizer o mesmo, é um tasco. E mulherão, formosura, depois a curiosa 'um jantar pra 500 talheres', e deusa, que é usada em várias épocas com diversas intensidades, do sublime ao desejoso e sequioso, o que também conta, e modifica o vernáculo.

Quanto ao vestir diriam janota, uma elegante, casquilho, peralta, peralvilho, garrida, para elogiar o esmero, ou denunciar a afetação, onde tantas palavras foram perdendo o uso, mas eu as amo todas, e as estimo, não me importando nada de ser classificado como antiquado, fora de moda, ultrapassado ou coisa pior, já que ninguém mais usa o refinado galicismo. As concito sempre que posso, gosto de vê-las num texto contemporâneo com suas figuras vetustas a imporem presença. Deliciosas criaturas as palavras, que nunca saem de moda, e só sua adequabilidade as poderá excluir, para dar lugar e uso, à usança, ou não, em franca oposição, a outra mais a propósito.

É curioso que a escolha, obedecendo aos modos, estilos, estruturação social, e à geografia, faça-se tão diversa, que muita gente do Sul do Brasil se possa ver perdida no linguajar nordestino brasileiro, e vice-versa, estando-se no mesmo país, apesar de imenso, como o sabemos, a máquina que invade as casas fez e faz por homogeneizar o idioma, o que não impede nunca que os regionalismos se mantenham fortes  e ativos, e que muito do português do XVII e do XVIII continue bem vivo no Nordeste do Brasil, como que muitas das expressões lusitanas sejam desconhecidas dos brasileiros. É muito interessante notar as variantes, e sua riqueza em expressar as distinções de personalidade dos falantes, pessoas dos diferentes locais, que trazem consigo, na palavra escolhida para dizer seja o que for, sua maneira de ser.

Quem sabe hoje o que seja um chambre ou um garibaldi (Eça, pág 86 d'O Primo Basílio.) quem hoje se repimpa como outrora, (Eça, pág 19 d'A tragédia da Rua das Flores.) não que não o faça, decerto muitos o fazem, mas quem o fará usando o verbo repimpar? Tira-se hoje dos bolsos, 'das algibeiras das calças' (Machado, pág 136 de Esaú e Jacó.) já quase ninguém. Quem diria, como Eça, de uma condutora de carro de bois, boieirinha (A Ilustre casa de Ramires, pág 206.)? Já não existem mais boieiras, quase não existem carros de boi, e muito em breve não mais existirão bois que se deixem conduzir. Ou como, n'A correspondência de Fradique Mendes, disse de uma senhora, ser esgrouviada (Pág 154.) quem se não Fradique para ver as parecenças com um grou? Ou como Machado a chamar umas mulheres de platinadas (Iaiá Garcia pág 150.) ou dizer que alguém foi 'beijar a mão de sua mãe' (A Mão e a Luva, pág 10.) já ninguém beija a mão às mães, ou ainda mais forte ao ver beleza, comparar a mulher a uma garça, ou...  Pois é, "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..." já sabemos.

Das velhas palavras, essas poderosas criaturas com seu humor concentrado, em desuso muitas, esquecidas outras, obliteradas outras tantas, repudiadas como antiquadas ainda outras, que, como em feitiço antigo, em sortilégio preservado, ou encantamento maravilhoso, fetiche de sua presença, encanto de seu 'donaire', são estimáveis, todas são, benditas presenças em seu dizer. Adjectiva-las de velhas é um mau feito, eternas que são...

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