quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Centenário de D.Sophia de Mello Breyner Andersen.









                                             



Tinha a cabeça baixa sobre a escrevaninha, ouvi o martelar do salto alto de seu sapato de cromo, depois uma voz contida pergunta-me da porta de minha loja: "Senhor, conhece a loja da Belá?" Levando os olhos e vejo uma senhora baixinha, muito coquete, com suas luvinhas brancas, que à primeira vista me encheu de simpatia. Respondi pronto, eu levo-lhe lá. Brasileiro, seu único comentário.(Pensei: devera ter dito eu a levo lá.) A tendo levado, soube que iriam mais tarde tomar chá. Fui convidado para o cha, hora e tal depois. Assim vais conhecer Sophia, sentenciou a Belá, minha especial amiga, tão diferente e tão única, assim como D. Sophia. Viviam num mundo à parte, posto que não eram desse mundo. Foi um grande presente que a Belá me deu, sempre lhe serei grato. Havia uma certa reverência da parte da Belá para com aquela Senhora de luvas brancas, como ninguém mais usava por esse tempo, menos ainda se não fosse em recepção de grande gala, mas a senhora era assim, depois, com seu falar amendoado, confeitado, conquistou definitivamente meu coração, não que buscasse ser simpática, nunca o faria, era uma espiritualidade boa que a circundava. Mas a Belá, que não prestava reverência a ninguém, sequer cortesia, quanto mais reverência, como era aquilo, porque era aquilo? Durante o cha iria saber.

Sigo pensando que há pessoas que não deveriam nunca morrer, sua graça, sua presença, sua energia, são de tal modo transbordantes, que enriquecem o mundo com tal intensidade, que nunca deveriam se apagar, luz que nunca se apaga de nossa memória, luz que ilumina o mundo, afastando as trevas, as tenebras tenebrosas da mesquinhez e pouca certeza, das falsidades e falsificações que enchem o mundo de mentira.

Vi desde o primeiro instante que com D. Sophia era tudo preto no branco, como lhe disse, do que ela riu-se muito, sobretudo da expressão que empreguei, ela gostava muito de reparar nas palavras, estas que por sua escolha definem o caráter de quem as usa. Sim, a verticalidade de D. Sophia era absoluta, e distintiva, havia como que uma linha que a separava do equivocado pretenciosismo das pessoas, que separava seu mundo do resto das coisas, e nele só entrava quem ela queria, não iria gastar seu precioso tempo com quem não merecesse. Curioso, lembro-me de lhe ter dito que não usava boa vela com mau defunto, do que ela muito se riu, e, depois como que em transe, corrigiu, não usava bom defunto com má vela. Como entendo hoje o que ela quis dizer. Absoluta, precisa, fulcral, certeira, direta, magnífica D. Sophia. Com toda a subtileza desse mundo, educação então nem se fala, com uma leveza e uma suavidade, que era capaz de matar com um olhar, ou com algumas palavras apenas. E assunto resolvido, virava a página, e não falava mais nisso, não tinha tempo a perder, tão incisiva, às vezes mesmo mordaz, sem enfeites, mas absolutamente confeitada, como se tivesse atingido uma cristalização, puro cristal que era. Uma janela para o mundo interior, uma dimensão tão rara, tão especial, tão magnífica, que só mesmo através de alguém como a Belá, a Fada Oriana lá do centro onde tinha minha loja, eu poderia ter conhecido, e poderia se ter completado a magia.

No dia 2 de Julho fez quinze anos que ela nos deixou, mas nesse seis de Novembro é que o dia em  que contamos um século que essa luz veio ao mundo, e é da luz, em claridade, que nos devemos recordar.
 

   

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