sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Morreu meu protector Jorge Sampaio.

Portugal tem uma raiz inglesa que ficou da proximidade secular com aquele país, que no início do século XIX atingiu um clímax. Esta linha de ação e de procedimento que brotava dessa raiz, formou muito da elite portuguesa, inglesando parte da alma nacional lusitana. Dr. Jorge Sampaio era moldado por um anglicismo muito forte, aquela forma de estar e pensar que baseia-se sobretudo na auto-suficiência, na retidão de caráter que deve revelar-se sempre em todas as suas ações, e numa visão da globalidade, filha da manutenção do Império. Estas características são tão fortes que os ingleses costumam pensar igualmente em face de qualquer coisa que afete o bem estar do império. Não mais havendo império, manteve-se a forma de sentir e interpretar as coisas. Nessa forma da cultura inglesa, moldou-se seu coração cultural (Dickens e Britania, the rule of law.). Assim era seu coração legalista. Este anglicismo do Dr. Sampaio provinha da sua formação, sobretudo emocional, além da cultural, porque vinha de casas onde se lia e lia, muito em inglês, e teve sua cultura formada também por um forte mergulho na fabulosa cultura inglesa. Falava melhor inglês que português. A avó de Dr. Jorge que o educou, se uma criança lhe fazia uma pergunta, fosse qual fosse, ela respondia sempre em inglês, despertando absolutamente o interesse da criança para esse idioma. Esta Senhora era uma old lady da Vila de Sintra, aquela vila que também era de Byron, cujos encantos e atmosfera molda quem lá vive. Dr. Jorge Sampaio era um sintrense de quatro costados, e um britânico nas reações de seu comportamento social. Um Gentleman. Filho da alta elite que vinha desde a monarquia, passando pelo Estado novo, um seu avô foi ministro de Salazar, e seu pai, médico, viajava por países de língua inglesa, viajens que mostraram ao menino Jorge o desenvolvimento desses países, e a formação de seu estrato social, integração que ele ambicionou que houvesse bem em Portugal, tornando-se socialista, o privilégio que sempre gozou por nascimento ambicionava para todos, era seu coração humanista. Na política, cuja prática é muitas vezes a arte do engano, manteve, o que ficará como sua marca, os valores que tinha consigo e que não os abandonaria por nada, era a voz de sua vó, os comportamentos aprendidos na casa paterna, a ética profunda com uma alargada componente judaica, de suas origens maternas, tudo junto tornando-o uma 'avis rara' em cenários muito flúidos como o da advocacia e o da política, o que causava algum espanto por seu procedimento recto inabalável. Era seu coração ético. Conheci o Dr. Sampaio em Sintra, eu tendo chegado aqui há pouco, emigrante ao volante de uma carrinha, e ele, presidente, a atravessar a rua que fica por detrás do restaurante Apeadeiro, para ir numa daquelas casinhas que ficam penduradas sobre a encosta que decllina a partir dali. Ia só com seu ajudante de ordens a alguns metros, e surpreendeu-se ao ver que eu freara abruptamenteao para lhe dar passagem, ao mesmo tempo que gritava da janela da carrinha: Para esse eu abro alas! Numa reação minha ao que sabia de sua vida, pois como eu fui preso político, respeito muito quem os defende. Ano e meio depois estava já lançado no antiquariato, ambiente de muita intriga, inveja e maledicência, e receoso de que me incomodassem por estar ilegal em Portugal, quando cruzei-me com ele numa recepção a que fui convidado, logo aproveitei a oportunidade para lhe pedir algo que me legalizasse entretanto. Ele, lembrando-se do motorista da carrinha de Sintra, que terá achado engraçado, no mínimo, prontamente mandou elaborar uma carta convite à minha pessoa, que, sendo convidado do Presidente da República de Portugal, estaria de certa forma protegido em solo nacional. Ele efetivamente se preocupava com o próximo, era seu coração cristão. Anos mais tarde fiz amizade com se cunhado, o Dr. Ritta, que gostava muito de antiguidades, e ele me contou que a irmã, D. Maria Ritta, fora cobiçada por meia Lisboa, porque era uma mulher muito linda, dos pés a cabeça, e que não dava bola para ninguém, e lá o Dr. Jorge com sua elegância, conseguiu chegar ao coração da moça. O que nos leva, esta sua elegância e paixão por D. Maria Ritta, a um incidente nos Jerónimos, quando numa recepção orquestrada pela igreja católica, não põem cadeira para D. Maria Ritta ao pé do Dr. Jorge, por ele não ser casado na Igreja com a sua mulher. Dr. Sampaio não faz caso, manda o ajudante de ordens ir buscar uma cadeira e pô-la junto da dele, causando imenso tumulto na cerimônia. Não iria transigir com um melindre (se não uma ofensa) à mulher que ele amava. O Andrezinho ainda comenta: "Viu pai no que dá não ser casado com a mãe". Era seu coração galante e determinado, de marido de indeclinável dedicação. Passados mais anos nos encontramos num evento de Rotary, ele já estava muito debilitado, tinha uma saúde frágil, viveu muitos anos assim, mas continuou sua obra. Nesse evento ele gostou de me ver plenamente integrado na vida portuguesa, não disse nada, seu olhar disse tudo. O Dr. Jorge Sampaio foi um homem único, a quem dedico meu respeito, e minha saudade, bem como minha gratidão, porque me fez chegar a carta convite sem a menor restrição e sem a menor indicação, era apenas um ato de defesa de alguém que estava com um problema, atitude que teve sempre ao longo de sua vida, defendia incondicionalmente os que necessitavam de proteção, era seu coração humano,"de carne" (Ezequiel 36:26) com sentimentos, mais que tudo.

3 comentários:

  1. Mais ninguém diria com tanta lisura o que aqui fica, em relação ao Dr. Jorge Sampaio, grande Homem, grande Presidente, grande Ser Humano que perdemos. Paz à sua alma.

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  2. Não temos comentários a fazer.Jorge Sampaio, que conhecemos aqui no Rio de Janeiro,quando de sua visita ao Brasil,deixou-nos a certeza de Homem honrado e humano... e isso admiramos.

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  3. Obrigado pelos comentários, em especial ao Maciel Ciano, que bem percebeu meu intento em revelar o que pensava do Dr. Sampaio. Abraços, Helder.

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