sexta-feira, 12 de maio de 2023

NUM INFINITO MUITO PARTICULAR.

A Antena 1 da Rádio Difusão Portuguesa, aos domingos, entrevista alguém do cenário sócio-cultural português, num programa que se intitula "Infinito Particular", que busca mostrar que a singulariedade de cada um tem alcance enorme, infinito mesmo, posto que somos todos muito semelhantes em sensibilidades, apesar de pessoal e individualmente sermos particulares. Portanto únicos em nossas respostas aos agentes causadores de qualquer alteração na tranquila linha que busca seguir nossa vida sempre que possível, gerando nela turbulências de vária ordem, aí somos muito diferenciados. Nesse 18 de Dezembro pp na Antena 1, foi a vez de Lídia Jorge, com sua centralidade, e firmeza suave, sua interpretação muito particular do mundo, sua ousadia invisível, que traduz-se numa interpretação resoluta de tudo que se passa, sem abrir mão da concórdia mister, o que leva a renomada autora muita vez a calar-se, por "pudor", ao colocar-se no lugar dos outros. Enxames de formigas, simpatia por empatia. Sensibilidade. Fraternidade. Compaixão. Misericórdia. Contando em seu livro histórias de um lar de uma Santa Casa da Misericórdia, Lídia Jorge nos leva a uma viagem interior, onde a realidade, no que é percebida, ultrapassa a própria percepção, uma vez que o que não é percebido é tão presente como se o tivéssemos ali à nossa frente a gritar: 'Olhem para mim, eu sou a realidade, tudo o mais é ilusão.' Uma bipolaridade angustiante. E, para além das semelhanças, como que saída de um preceito budista, essa percepção do imperceptível, revelasse sua verdade transcendental: TUDO RESIDE NA DIFERENÇA DAS SENSIBILIDADES, essas que nos levam muitas vezes a termos simpatia, para além da empatia, posto que uma vez assumida a identificação, o sentimento tende, por norma, a se aprofundar e criar raízes mais entranhadas na inequívoca identidade estabelecida. Porém outros sentimentos para além desta identidade que gera sentimento, atingem níveis mais subterrâneos, calcados numa identificação que se nos entrou por algo mais intenso que a própria identificação de per si. Aos que desse modo são mais superficiais, chamamos afeto, amizade, fraternidade, ao mais profundo, amor. Fraternitas est amor, lembro a conclusão dos antigos. Amor solidário é compaixão. Amor sublimado é misericórdia. É justamente este o título do último livro de Lídia, escrito a pedido da mãe, que estava a viver num Lar da entidade meio-milenar do terceiro setor que atende por essa designação, e que, portanto, guarda esse nome, tendo sido o que motivou o romance, e o titula. Na Antena 1 - afirmações de Lídia Jorge. Afirmações que nos levam à conclusão de que a relação de verdade, mais que transfiguração, exige transposição. " É mais do que verdade", "o melhor que sei, o melhor que posso" também disse a justificar sua escrita. Sendo que, pelo poder transformador de alguém sofrer com o outro, não pelo outro, em comunhão, a autora cria uma décima quinta obra de Misericórdia (1) com seu romance, uma obra de transposição, ou seja, concitando-nos a irmos além da relação, posto que a relação, seja qual for, é uma verdade estável, que nos exige uma face transfigurada para a convivência com ela. Porém Lídia compreende que nos é exigido mais para sermos misericordiosos, posto que para tal é necessário ultrapassar, transpor a realidade, para conseguir a comunhão que estará além, na alma podemos imaginar, e que "é mais do que verdade". Premonição. Enfeixando estas condições para transpor, ir além, está uma percepção supra-humana, a de pressentir verdades ocultas, a de perceber realidades que virão a se concretizar. Assim foi. O romance Misericórdia de Lídia Jorge relata uma invasão de formigas, e esta era como a que, pouco depois da publicação, viría mesmo a acontecer num lar da Misericórdia, tal e qual está relatado no livro. Prognóstico arrebatador. Premonição. Prova da sintonia perfeita alcançada pela autora com o objeto de seu relato ficcional. Como se enxergasse no tempo para além do momento. Que mais se pode esperar de um autor? 'Desdemocratização'. Sua percepção fina, remarcada na entrevista (disponível em podcast), nos fala de um terrível problema de nosso tempo, que todos já percebemos ser reincidente, e que cada vez mais se vai generalizando, o da 'desdemocratização' da sociedade (é de Lídia o neologismo), e que sua percepção arguta a percebe como uma progressão, não direi imparável, mas avassaladora em nosso tempo, e deixa o registro como alerta, sabedora do perigo que há quando uma sociedade deixa de ser democrática. A décima quinta obra. Com sua "mais do que verdade" a autora nos convida a reflexão de "o melhor que sei, o melhor que posso" que atribuindo a seu trabalho, transpõe à toda realidade, posto que é o que verdadeiramente a ocupa-preocupa, a compreensão da realidade, que sempre nos exigirá esta postura metafísica da transposição para lidarmos com ela, e que consequentemente vai muito além da sexta obra espiritual de misericórdia, que aí está ainda imersa em sua ação de resposta à realidade, uma vez que só com o auxílio de uma sensibilidade mais alargada e geral, para além da nossa exclusiva, e que nos liberte da prisão do entendimento pessoal, nos permitirá a compreensão do todo, sua identificação, e a percepção do que está oculto no imenso emaranhado da totalidade. Qual o tom? A missão de contar a 'Misericórdia', recebida de sua mãe, que cumpriu com o livro que tem esse nome, levou Lídia, a alquimista, a profundos questionamentos que a inquietam, e que a faziam buscar o tom certo, posto que só este permitiria contar a história, criá-la na verdade, sem se perder pelo pieguismo, e também sem se arrojar no universalismo, posto que pretendia escrever um romance, e não uma tese. Diz a dedicatória que me faz no meu exemplar do seu Misericórdia: "Para Helder Paraná Do Coutto, com o agradecimento por lhe dever parte da música deste livro. Abraços imensos da amiga Lídia, Lisboa, 21. out. 2022" era sua forma de me agradecer uma conversa que tivemos em agosto de 21 quando estava ensaiando o modo de escrever o livro, eu disse-lhe que era mister, antes de mais, o escrever ao som do Miserere mei, Deus, de Allegri, e do Miserere cantado por Zucchero e Pavaroti, o que ela regista à página 9 do romance. Pois ela seguiu o conselho, imaginem. Foi assim que terei eu de alguma forma ajudado à grande autora a engendrar essa sua obra. Não era preciso dizer nada, menos ainda pôr no livro. Só a honestidade, sobretudo a intelectual, torna os seres humanos maiores. Lídia é absolutamente honesta em cada gesto, eis onde reside sua extrardinária força, mas não só. A curiosidade da mãe. Neste agregado de verdades, das quais Lídia não deixa passar nenhuma, está a da curiosidade de sua mãe, que lhe estimula todos os arquétipos, modo pelo qual sabe exatamente de onde vem cada um de seus entendimentos, é impressionante! "Como um dia de domingo". A imensa sensibilidade da grande autora depreende-se de pequenas deixas, de esparsas anotações, que surgem de sua enorme capacidade de dizer, e quem ouvir a entrevista, ou ler o livro, perceberá que sua escrita, assim como o que diz, e faz, é como quem precisa de falar com o outro, e de "andar de encontro ao vento", para "encontrar de qualquer jeito" um modo de expressão, posto que está sempre a descobrir o que se passa, e os seus páthos (2), portanto, quando estes se querem ir embora, "faz de conta que ainda é cedo", sabe que "tudo vai ficar por conta da emoção", essa que põe no que escreve, seu muito particular e infinito poder de dizer. (1) São as 14 Obras da Misericórdia: Obras Corporais: 1ª Dar de comer a quem tem fome; 2ª Dar de beber a quem tem sede; 3ª Vestir os nús; 4ª Dar pousada aos peregrinos; 5ª Assistir aos enfermos; 6ª Visitar os presos; 7ª Enterrar os mortos. Obras Espirituais: 1ª Dar bons conselhos; 2ª Ensinar os ignorantes 3ª Corrigir os que erram; 4ª Consolar os tristes; 5ª Perdoar as injúrias; 6ª Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; 7ª Rogar a Deus por vivos e defuntos. (2) Refere-se à música deste nome, da autoria de Michael Sullivan e Paulo Massadas, imortalizada nas vozes de Gal Costa e Tim Maia. (3) Essa palavra grega πάθος que quer dizer sofrimento, paixão afeto - diversos tipos de emoção, e também qualidade que evoca tristeza, que depois alargou seu significado para expressar tudo que acontece, os incidentes, e que Aristóteles usou para designar um dos três meios de persuasão do discurso na Retórica; terá sua origem na antiga expressão frísia 'pad', que deu em inglês 'path' que antes de mais quer dizer caminho (de passo, ato de mover o pé, este que afinal cria o trilho), e em latim tem ambas as significações, a do caminho que confirma sua orígem frísia, e a da emoção. E que também está como prefixo em muitas palavras em diversos idiomas. Nietszche deu novo uso ao termo, sem abandonar de todo sua significação original.

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