sexta-feira, 12 de setembro de 2025

"Há que dizer-se das coisas" e das pessoas.

Poucas coisas serão mais legítimas, verdadeiras, absolutas, quanto a integridade, essa condição de inteiro, onde não falta nada, onde nada está alterado, posto que as coisas só são o que são em sua totalidade e em sua inteireza, toda outra condição ou circunstância é uma forma de lesão, onde a pureza primitiva foi subtraída, e a intenção original terá sido retirada, roubando-lhe, de certa maneira sua integridade, essa que não admite rupturas, ou desagregação. E me vêm as palavras do grande poeta Carlos Ary dos Santos, imenso poeta, em seu poema "O Objeto" onde diz: "Há que dizer-se das coisas o somenos que elas são." e fazendo muitos questionamentos nos lembra que algo que se parte transforma-se em caco, parte desintegrada do original, perdendo sua pureza primitiva, que, não mais intacta, passa a ser outra coisa, deixando de ser o que era, condição diversa, nem melhor nem pior, podendo vir a ter qualquer uma destas novas condições, mas ainda que ficando na mesma, passa a ser outra coisa. O artista prima pela materialidade de sua obra, uma vez que entende que a concatenação das partes só é perfeita no todo original, aquele que motivou sua realização, sem tirar nem pôr, o impulso original deve perpassar inalterado toda a obra, preservando a mensagem, para que nenhum caco sobrevenha. É curioso notar que as falas introduzidas pelos atores num texto original no teatro, chame-se justamente caco, uma vez que são pedaços outros, não a matéria original com que se fez a obra. Deste modo a luta principal de um autor é conservar sua inteireza original, que tantas vezes é alterada em virtude de um entendimento mais fácil, de uma simplificação de natureza vária, até mesmo comercial, uma vez que nossa obra não é nossa, assim como os filhos, quando tomam corpo assumem a autonomia própria de todas as coisas, e aqui outro imenso poeta, libanês este, Kalil de seu nome, que nos lembra que a ânsia da vida tem seu papel, e que esta afasta de nós nossa obra, nossos filhos. Muitas vezes lutamos para que não seja assim, pretendendo reter a originalidade, que nos será sempre roubada em sua relação com o mundo, este que tudo altera e corrompe. A razão desta minha reflexão reside nos ventos originados duma conversa que tive com a Lídia Jorge, por quem já confessei minha admoiração e meu apreço profundos, em que eu perguntava dos livros que saíram no Brasil, e ela disse-me que "O vale da Paixão", de 1998, foi a segunda escolha, já tendo sido publicado o "Misericórdia", mas que ela exigiu que se repusesse no 'Vale' seu título original: "Diante da manta do soldado" que evidentemente tinha sido alterado por razão que ignoro. Não tive coragem de perguntar a razão, poderia ser uma, não direi imposição, mas uma sugestão insistente da editora, que tem todo o direito de ver o lado comercial da coisa, e que aceitamos, devido a tudo que envolve a publicação de um livro. Calei-me. Entretanto fermentou em minh'alma esse detalhe. E deu-se aquilo a que os franceses muito sensivelmente chamam de 'clocherie', torre sineira, lembrando que sempre algo badala para nos lembrar uma coisa que nos tenha escapado, Lídia Jorge quiz restaurar a pureza original de sua obra "Diante da manta do soldado" preterindo o título "O vale da paixão" já com tanto sucesso editorial. A isso chama-se INTEGRIDADE, fidelodade às coisas e a si mesma, talvez por isso, e só por isso, mais que todo o resto, Lídia é o que é, tem o sucesso que tem, e revela uma grandeza nas pequeninas coisas oriunda desse caráter, tenho vontade de dizer canino, desta natureza que tanto apreciamos e respeitamos nos nossos aigos de quatro patas, e que muitas vezes subalternizamos nos humanos como nós, esquecendo que "Há que dizer-se das coisas o somenos que elas são" pois só se é grande quando se é inteiro.

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