domingo, 2 de abril de 2017

Ema. Maria Teresa Horta. Ema.







Como é.

                                                                                        "Dentro de mim mora um anjo
                                                                                          Que tem a boca pintada
                                                                                          Que tem as unhas pintadas
                                                                                          Que tem as asas pintadas...
                                                                                          Que passa horas a fio
                                                                                          No espelho do toucador.
                                                                                          Dentro de mim mora um anjo
                                                                                          Que me sufoca de amor."
                                                                                                        Sueli Costa musicada por Cacaso.



A fatalidade de ser mulher é uma condição excludente, vale dizer, é tornar-se um ser à parte, algo  diverso e único, algo como avis rara, razão do mistério de ser mulher, do mistério de toda a mulher, daquela nuvem envolvente que as cerca, as embala, e as traduz para além da realidade cotidiana, que inesperadamente podem promover um encontro absoluto, ou a expatriação total, em ambos os casos situação exclusiva, única e paralela, condicionante da qualidade de um entendimento metafísico, pleno e transcendental, para além do mistério da vida, para ao de lá da condição de existir, posto que existir traz a banalidade, enquanto penetrar a nuvem traz magia e surpresa, exclusiva condição da emoção.

A absoluta fatalidade desse sentimento, bem como desse desejo, manifestação incompleta de possibilidades infinitas e tradução inquietante, realidade difusa ao observador, confusa ao ator, e contusa a todos que penetrem a nuvem, ainda que ocasional ou displicentemente, porque cada anjo terá garras muito próprias e afiadas, que, pintadas ou não, cumprem sua lacerante função de serem reciprocidade ao peito que rasgam, ainda que involuntariamente, fatais como a vida, dilacerantes como a morte.

Entre a fatalidade relativa e a absoluta a mesma condição, projeção atroz da impossibilidade necessária, corrupio obsequioso de necessidades impossíveis, expectativa e realização, mas nunca afinal realidade pela constante presença da nuvem, essa intromissão e transcendência, essa disparidade.

Ema, como toda mulher, sempre prenunciou seu paralelismo, e nessa noção é hamletiana, ser e não ser, exclusão e pertinência, guardando aí dois opostos imanentes de uma mesma fonte oculta, não ser e ser, pertencer ou fugir, sempre a mesma contradição. Quando falava desse prenúncio disse abordando sua possibilidade:
                                Mas ser possível será bastante?


A resposta pessoana: “Baste a quem baste o que lhe basta O bastante de lhe bastar” indica a satisfação de alguns face a reação de outros, porém o possível indica a permanência da barreira que demarcava o limite até onde se ia, mesmo sendo ainda possível se ir mais longe para além, aquém estamos, rematando como o poeta  “A vida é breve a alma é vasta” denunciando o limite e o infinito além a que estamos expostos, ambos nessa dualidade existencial do corpo e da alma, a que dura e o que não dura, logo assincrônicos.

Então uma das Marias, a Teresa, volta ao eterno tema do feminino, se é que algum dia saiu dele, onde sua Ema, uma mulher paralela como prenuncia a capa com o pescoço longo da mulher modiglianesca, o cisne no lago, que ali não está só para ser contemplado, ali está porque existe, porque é, e geme, e mexe, e vive, não teme, é tema: Ema !

Uma face de mulher, mas não um perfil, um sentimento, uma emoção, uma presença poética, como não poderia deixar de ser. (Eu já havia comentado, e, aqui, repito, por pertinente.)



Mas quem é Ema? 

                                 Que ser presença não basta. Que nos virá dizer?


                                                                                                   "Nem só o que eu aparento
                                                                                                     Eu gosto,
                                                                                                     Nem tudo o que eu represento
                                                                                                     eu mostro,
                                                                                                     Existe a outra,
                                                                                                     Existe a outra . . ."
                                                                                                               Ivan Lins e Vitor Martins.

Tudo pode ser percebido se seguirmos as 152 perguntas do texto, atento a que este começa com uma pergunta, o que vem antes é uma circunstância e um estado d'alma que se irá repetir às páginas 19, 39, 67 e 87 (*): "Não entendo sabe?-Éramos duas, sabe?-Fusionam-se?-Aceite?-Que afeto conheci eu até hoje?-Que mãe me assistiu no parto?-mãe de que mãe?-estive a morrer, sabe?-Estou pronta, minha mãe?-Fascinava?-Matei?-Matei?-pelos limos?-Rosas, lembras-te?-dançando?-A esperança?-Quem é ela, afinal, para deste modo o afastar dos livros?-Segurança?-Comê-la?-Sabe a mãe?-Balança da infância?-Os dois conversando?-Sou estéril já lhe disse?-Quantas vezes lhe repeti isso?-Um trapo, um trapo, percebe?-resguardada?-defendida?-E eu? e eu?-Sabe o que é fecundidade?-Quantos minutos me darás dos teus cadernos, dos teus livros, dos teus jornais?-Que mal tem?-A quem deve então pedir auxílio?-A quem deverá pedir auxílio?- Nunca?-Cambaleia?-Cambaleia?-Quem mais a possuirá?-E quem não está suspenso do seu gosto?-Sou o centro do mundo vêem?-Esperança?-Porque não reparas em mim?-Quem sou eu afinal para te afastar os livros, dos teus jornais, do teu trabalho?-lembras-te?-Tens tudo o que desejas não?-Precisas de mais dinheiro?-Será possível que eu algum dia venha a ter quietude?-Será que vou ter descanso?-Acha que sou um monstro?-Me amasse?-se soubesse teria vindo?-Da minha mãe?-cambaleia?-Tudo o que?-Tudo?-Cambaleia?-A paz?-E tu?-Eu que?-Que mais será preciso?-mármore?-A mulher sorri?-Ladainha?-Mortal?-Duas?-Dos seios?-à risca?-Acha que eu sou um monstro?-Que crime?-Que fiz eu de mal?-Que mal é que eu fiz?-Porque desvias sempre os olhos da estátua no meio da praça?-Saberias o modo atento como eu gostava daquela mulher de pedra a dançar na sua alegria de pedra?-Excitam-me vês?-Não achas curioso como eu afinal consegui inverter os acontecimentos?- É a loucura, sim, mas que importa?-Que importa mais que o medo da expressão seu rosto, quando lhe entregar a filha?-Como é que lhe hei de explicar?-Um crime?-De tudo?-Que fogo apaguei dentro de mim e esqueci?-Que desejo escuso, cheio de mal?-Que ódio?-Porque não confessar que ele continuava a perturbar-me?-Acha que estou perdida?-Quantas vezes te disse que te odiava?-Nenhuma?-Cambaleia?-Morre-se de ódio?-De paixão?-(quantos?)-duas?-Acusador?-Teme, sempre temeu por si?-A sede?-Há séculos?-Que invenção reinvenção maior foi preciso para aguentar e aguentar o caminho dos dias, dos meses e dos anos?-Lembras-te?-Ou sei?- A carta foi uma vingança apenas?-Ou já o próprio crime no seu começo?-(empalidece?)-Hesita?-sabe quem escreveu aquela carta?-será isto que o juiz vai entender logo, que o matei?-De amor?-Liberdade condicional sabe o que é?-desse desejo de morte e da sua execução?-Como?-E você, não terá afinal medo de mim'-como posso eu amar um homem como tu?-Como?-Será que o meu pai te pagou para que casasses comigo?-mas afinal quem sou eu para te acordar, te tirar o repouso?-sua vaidade e sedas, não?-Faz parte da mulher ser louca, sabes?-Como internaram minha mãe, não é?-Destino?-O escritório dele ou o teu escritório, que diferença faz?-Considera que eu sou louca como a minha mãe?-Quem tocou nos meus livros?-Já reparou que são as mulheres que ao longo dos tempos têm escutado vozes?-Mulheres histéricas?-Sempre ouvimos vozes, todas, já alguma vez pensou nisso?-de sofrimento?-era?-E tu?-que fiz eu para sofrer tudo isso? -Todo este castigo este destino de desdita e de amargura sem fim?-Nojo entendes?-Será que mais alguma vez te verei mina irmã?-Uma voz?-Minha mãe?-como eu?-Acredita que possamos viver várias vezes a mesma vida?-Acredita?-Acredita?-Que importa?-porque me deixa partir?-Condenatório?-Uma vontade adiada?-Lembra-se daquele meu sonho em que eu criança matava com uma pistola um homem e o enterrava no chão de pedra da cave de meus pais?-Apenas uma substituição?-Já alguma vez te contei que o meu marido me havia ameaçado de internamento?-Quantas vezes já lhe falei do medo que tenho da loucura?-Quantas?" E que termina com uma pergunta, a do medo da loucura, expressão da condição de oprimida. São perguntas que tudo respondem.





Legítima defesa da sanidade.


Vita Sackville-West, musa e amante de Virginia Woolf, tinha uma defesa para seus pensamentos, toda mulher a devia ter, para poderem resistir às invasões constantes, invasões vorazes, predadoras, impostoras. Ema não sabe o que fazer, tenta um amante, tenta fugir, fugir para onde? (página 103*) Tenta aceitar, tenta calar, tenta entender, mas existe a outra . . . Cada mulher é todas as mulheres dentro de si num universo à parte, uma nação à parte, outra tribo que canta e dança amargurada. Mesmo em suas alegrias há imensa tristeza.

A narrativa de Ema segue um relato para a psicanálise, e ocorre em multi-temporalidade, uma multi-temporalidade intercalar, que por fim gera atemporalidade, mesmo estando claro que desenvolve-se nos princípios do século XX pelo décor das cenas, o tempo torna-se difuso, nebuloso, onde tudo realmente se passa mas só Ema o sabe e intui, nada se passa, aceitando tudo inclusive ver-se diante de si, confrontando a realidade das mulheres de todos os tempos, passados (pág 126*) e futuros (pág 127*), uma condição, é verdade, mas uma manifestação sísmica, terremoto, furacão, maremoto (pág 136*), onde as banalidades da vida são tão intensas, - lágrimas, medos, dores, náuseas, vômitos - essas coisas tão femininas e tão eloquentes. 

Ema não se conseguindo defender, defender-se-á totalmente, Ema mata!



Uma razão.



Anseio e ânsia, fios condutores de uma realidade incontornável para além das perguntas que demarcam tudo, há também umas quantas afirmações que também o fazem, revelando uma postura, desvendando situações subliminares, aquém da consciência e prenhe de odores, sabores, pudores, horrores, amores irrealizados, desamores, sensações entrecortadas, e Ema condena-nos a todos! Vestir-se-á o vestido preto que torna-se branco, duas formas de luto, o da alma e o do corpo: "Esta mulher é louca... - Cale-se! - Olham-na por um segundo... - Nunca tive prazer com ele, nem com homem nenhum aliás. - Ela detesta isso porque lhe dói. - ...mordedura de víbora... - Não vais aguentar o parto. - ...segurar... - ...duas mulheres que se afastam. - ...a tentar passar despercebida... -  ...o silêncio dele punha-me doida! -  Antes de morrer... - A mulher que ontem viste da janela, parada na praça, era Ema. - ...a loucura toma conta do meu corpo. - ...o único prazer... - Primeiro recusou-se a ouvir a voz. - ...dúvida...- Mas porque é que o fazia? - Estou cansada. - ...a dor, a raiva, a náusea. - ...ela era a voz. - ...entendeu que havia a outra." E aos dois fios condutores se entrelaçam, e só pode haver curto-circuito.



Das coisas.


Uma estátua, dois biscutis, dois quadros, umas quantas bonecas, um pendente de rubi. Também nos dá conta das coisas, de seu fim, terminada sua razão de ser, duas árvores, a do balouço e a de Natal, e entre elas transita toda uma vida, resta a pergunta várias vezes repetida: "Cambaleia?"



É má Ema?

Da maldade e da bondade das pessoas prevalece interpretação subtil, que não poderemos sequer tatear,  quanto mais discernir. . . A catarse sem  a devida licença aristotélica não é purificação, é chafurdar-se. "Cambaleia?"


As banalidades da vida, na maioria das vezes, são tão eloquentes como penetrantes, e nós não nos damos conta as crendo apenas banalidades.



(*) Da 1ª Edição da D. Quixote de Janeiro próximo passado.

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