terça-feira, 24 de outubro de 2017

A Nova Lei.







Dois Juízes Desembargadores do tribunal da Relação do Porto, com uma sentença que evoca o Código Penal Português do século XIX, já ultrapassado e a Bíblia, em sua parte também já ultrapassada, para acusar a condição de adultera a uma mulher em um processo com os mais fortes adjetivos que encontraram, numa apreciação verdadeiramente medieval, onde evoca até a lapidação, e que é notícia por ter levantado a indignação pública contra a forma da decisão, e, portanto, suscita os reparos seguintes: quanto aos encômios valho-me para responder a isto com recomendar a leitura de meu artigo de maio de 2013 intitulado Mulher, sempre a vítima preferencial.

Entretanto quanto as citações bíblicas consolido aqui uma apreciação mais alargada do fato desses anormais se valerem de textos arcaicos, e não mais em vigor, para justificarem àquilo a que se chama Justiça, posto que um Juiz ao decidir, devendo restringir-se à letra da Lei em vigor, mais aos fatos, e à sua convicção que deles resultam, deve tão somente decidir à luz dessa realidade sem resvalar para sentimentos pessoais, crenças, ou mesmo posições de natureza ideológica. Um Juiz não é ele quando julga, é os fatos à luz da Lei. Tudo o mais fica de fora, poderá ele não concordar com o que a Lei aprecia dos fatos, mas não pode evocar essa discordância para se afastar da disposição legal. Fazer isso é criar precedente pernicioso que afasta seu julgamento da meridiana Justiça.

Entretanto o curioso no 'decisum' desse anormal que legitima a violência doméstica, contra a qual a sociedade tem se batido, repudiando-a, com mudança de comportamento e evidente reflexo na Justiça, e em suas condenações propagadas, criando uma nova e bem vinda cultura de entendimento das relações humanas, com jurisprudência, e, assim, resgatando a mulher de sua condição de ser oprimido pela força física de seu mais frequente agressor, o próprio companheiro, entretanto, repito, é que a evocação bíblica mostra total desconhecimento do texto bíblico em sua totalidade e realidade completa. Vejamos!

Evangelho quer dizer literalmente boa notícia, boa nova, ou seja  traz em si a ideia de que vem trazer até nós, após os milênios de uma Lei de beligerância, uma Nova Lei, a Lei reformulada pelo amor de Jesus Cristo, que reafirma e contradiz valores que considerava maus para as pessoas. Quando falamos Bíblia no Ocidente, incluímos esta importante parte dela a que chamamos evangelhos, e que nos dão a Nova Lei, resgatando milênios de opressão e violência legal, segundo a qual imperava a consciência legislativa de Talião - Dente por dente, olho por olho - Mesmo para o Torá, que guarda a Velha Lei,  não estará bem a letra morta dessa Velha Lei, posto que o trabalho vivificador rabínico, feito ao longo de centenas de gerações, deu nova forma a Velha Lei.

Porém entre os cristãos é absolutamente claro que Jesus reformulou a Lei, com suas palavras e com seu exemplo, com sua forma vívida de interpretar as relações humanas, como máxime Juiz que é, e com a presença do amor na prevalência da Justiça como forma de regular essas relações.

Logo resta relembrar a esse anormal que tendo Jesus encontrado uma mulher dita adúltera pronta a ser lapidada, apedrejada por um grupo de cidadãos que aplicavam a Lei antiga, reformulou-a com o seguinte gesto: Pôs-se à frete da mulher e desafiou aos do grupo que se preparavam para lapida-la, já com as pedras na mão, que atirasse a primeira pedra aquele que nunca tivesse pecado. E por fim dá sua sentença quando diz à mulher que vá e que não peque mais. Esta a Nova Lei para quem crê na Bíblia ou para quem a evoca, e não os ditos da Velha Lei que diz que a adúltera será punida por apedrejamento. Só por sofisma, ou ignorância, se pode hoje evocar o texto bíblico para justificar a condenação da mulher em benefício do homem que a agrida.

Os Senhores Desembargadores hão de decidir qual das duas razões lhes serão atribuídas.


5/12/2017 - O conselho superior da magistratura condenou aos dois juízes. Não podia ser de outra forma.

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