domingo, 22 de outubro de 2017

"Oh Gente da minha terra...."





Há certos cantores que só existem para glorificar àqueles que imitam. Outro dia ouvi alguém, já não me lembro quem, a cantar "Gente da minha terra" este poema que nos deixou Amália, e é uma revelação de um momento de iluminação de D. Amália, e que Tiago Machado musicou, e ao qual a cantora Marisa dos Reis Nunes Ferreira deu uma dimensão fabulosa, com a responsabilidade que tinha de cantar um poema de Amália, a moçambicana que queria ser fadista, num disco que se chamava Fado em mim e que era sua estréia, onde canta para além desse fados que foram imortalizados na voz de Amália, e para os quais Mariza soube procurar e encontrar o seu próprio caminho a interpreta-los, e subitamente me apercebi que devia um texto a Marisa, pela sua grandeza, pela sua individualidade e por sua simplicidade.

Isto me ficou na cabeça: O que dizer? Como dizer? Até que vi uma homenagem que a RTP fez há muito tempo a Edith Piaf, onde a 'interpretava' uma cantora, boa cantora, mas para ser Piaf, só Piaf.
Mesmo se eu tivesse a voz de um Pavarotti e me pedissem para interpretar Caruso, eu declinaria com a afirmação de que ninguém pode interpretar Caruso, mas há muita gente que não se dá conta e com isto, apesar de muito bons cantores, cumprem a única função de glorificarem aos que imitam.

Os houve muitos, e um dos últimos foi uma moça, que canta bem, mas que quis por força ser Amália, e deu em gritadeira, até que desistiu e desapareceu, é pena, pois podia fazer boa carreira se não tivesse querido ser Amália. Quem tem ouvidos de ouvir sabe que só há uma Amália, uma Edith Piaf, um Caruso. Seres com luz própria que encontraram um caminho de esplendor e nos proporcionaram momentos de maravilha com a cristalização de certos momentos em seu repertório. Quem cantará "Povo que lavas no rio" ou "Foi Deus", ou "Coração independente", ou mesmo a "Casa da Mariquinhas", com o poder de interpretação, a força, ou a densidade de D. Amália? Quem cantará  "Non, je ne retrete rien" ou La Vie en rose", ou "Padam, Padam" ou o "Himne à l'amour" com os vibratos de D. Edith? Quem terá a maviosidade de D. Enrico no "E lucevan le stelle"ou no "Core Ngrato" ou mesmo "O sole mio"? Quem?

É, ao ouvir esses intérpretes que os imitavam ficava claro tudo que não estava lá, a 'décalage', o 'gap', o vazio e a distância para chegar a qualquer um desses cantantes. E com Marisa dava-se o mesmo! Mariza conquistou um lugar no cenário da interpretação vocal da música, como intérprete e como fadista, sendo que nessa segunda condição não seria nada fácil com o vácuo deixado por Amália, e com as tentativas anteriores de muitos em preenchê-lo, e também por ter o 'phyique de rôle' inadequado, por ser moçambicana, e mesmo por ser mulata. Porém é só ouvir Marisa e lá está tudo, toda a magia mister de um grande intérprete, e tudo é ultrapassado. Oh gente da minha terra, só a maravilha da voz e o sentimento importam, e logo todas as almas serão tocadas, e far-se-á a magia da interpretação, única, absoluta, verdadeira, manifesta.

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