domingo, 9 de junho de 2019

DA RAÇA AO TEMPO QUE PASSA.







 10 de Junho > Da Raça, ao tempo que passa.


Junto à estátua, no largo que tem seu nome, inspirada na de Da Vinci em frente ao Scala, em Milão, ocorreu-me que o verdadeiro anjo custódio de Portugal, cedendo o dia de sua morte como marco de uma efeméride justa, que teve sua origem numa ideia confusa e atrabiliária desde os tempos em que era feriado municipal, até que a Constituição de 1933, que cria o que ficou conhecido como Estado Novo, anulando toda a legislação anterior, onde o dez de Junho não constava como feriado, mantendo o segundo adjetivo que empreguei, esclarece o primeiro, incluindo o dia como nacional. Passando a ser o que nunca deixará de ser, o dia de Camões, o dia de Portugal, e da Raça. Este último epíteto a partir da inauguração do Jamor, uma década depois, consoante o discurso do ditador. Essa história de raça, que afinal não é má, pegou, e passa a dar um tom patriótico, já que raça é, em seu maior entendimento, e conforme sua origem na acepção italiana donde procede, conjunto de indivíduos de mesma qualidade. E todos aqueles que têm as qualidades da portugalidade, são, consequentemente, dessa raça.

O 25 de Abril, que gostava de mudar o nome às coisas, como o da ponte que atravessa o Tejo, transformou o dez de junho no dia nacional das Comunidades, em 1978, tudo sempre aquém e além, motivado por interesses circunstanciais e de regime, pois tudo fazia-se sem se darem conta do fio condutor de tudo isso, a língua portuguesa.

Sou  brasileiro, como a maioria de meus leitores sabe, e entretanto já se completaram mais de duas décadas que encalhei em Portugal, adorável encalhe no mar da língua, numa praia ensolarada duma Europa cinzenta, linda praia ocidental em que os lusitanos, depois tão modificados, forjaram o território que os forjava com sua claridade, com as amenidades do clima, com a pujança agrícola, com as características do meio, com bom e abundante peixe, e com alguma presença africana no ar, vinda do outro lado do canal, boca do mar do meio da terra, que os romanos dominaram tanto, que o chamaram seu. Eles que nos deram, em sua evolução, esta língua mítica e complicada na qual me expresso facilmente, mas que a maioria dos que vêm a tê-la como segunda, encontram enorme dificuldade em entendê-la, e terem destreza em sua expressão. Apesar das muitas capas, a alma celta e cônica, romance galego barbarizado, perdura nessa "Última flor do Lácio, inculta e bela..." como a queria Bilac, ganga impura, ouro acrisolado de fojos remotos que herdei, tornando-me rico, esplendor realizado, amálgama de perdido cadinho partido, que não forjará outra tão bela, alguma vez.

No entanto só existe como verdade autônoma e partilhada essa riqueza vernácula, porque o povo bravio que a falava quis ser senhor de si mesmo, e um rei guerreiro realizou o sonho. No entanto é ainda sonho que só se individualiza, deixando o galaico, livrando-se do castelhano que devorava o leonês, assumindo uma literatura, uma identidade, e, pleonasticamente, uma narrativa sua de si mesma, quando oficializada em 1297 por D. Dinis que, ilustrado, entendeu a importância do idioma para ter uma nação, mas só é pouco depois, ainda não se tinham passado duas décadas, quando este mesmo rei da dinastia Borgonhesa, a realiza como o poeta; o trovador medieval, que quase reinará ainda uma outra década, e que terá suas cantigas recolhidas, junto das de seus avós, Alfonso X e Sancho I, no livro perdido na qual as reune D. Pedro, seu primogênito bastardo, Conde de Barcelos, também trovador, que chegará até nós nas suas cópias prováveis, os Cancioneiros da Vaticana e o da Biblioteca Nacional e de sua cópia muito posterior na 'Bancroft Library' que viu aos dois para os copiar, com (?) ninguém sabe (1). 

Começa a gesta portuguesa neste 1316,  a espanhola é do princípio do século anterior c.1201, com "la canción del mio Cid", porém ambas começam sob a forma de poesia, a mais forte e truculenta expressão dos sentimentos em qualquer tempo, ou lugar. Comemoramos no 2016 o sétimo centenário da literatura portuguesa, que começara com essas cantigas. Consolidação de algo maior que a vida, e que modela, sendo a forma como a apreciamos, a percebemos, e a comentamos, essa língua na qual nos expressamos. 

E o que pode mais conter a maneira de ser e estar de um povo que sua literatura? Fui muito ativo, há três anos, mandando cartas a toda gente, em razão da importância da data, nem uma linha de resposta ou comemoração, a meu coração não fez mal, pois enchia-se, e enche-se de alegria e orgulho por expressar-se na língua de Camões. 






(1) O da BN, também conhecido como Colocci-Brancuti, é de 1525/6, o da Bancroft de 1600, e o da Vaticana também de 1525, terá sido copiado à mesma época do da BN. O original de D. Pedro é do primeiro quartel do XIV, e as 1205 canções do XIII e princípio do XIV.  O da Ajuda também será posterior ao de D. Pedro, e foi escrito em gótico.

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