quarta-feira, 2 de julho de 2014

10 anos sem Sophia de Mello Breyner Andressen.

LUZ QUE NÃO SE APAGA
                                                                     A Sophia de Mello Breyner Andressen.


 Falar do espírito ou da luz de uma pessoa,
 falar da força e da voz de uma pessoa,
 não é coisa simples, não é coisa à toa.
 Para evocar alguém, o que se diz?... Ou: O que se diria?
 É muitíssimo mais complicado quando este alguém é Sofia!

Que espírito terá Sofia
pra esse seu enorme dizer?
Dizer é perceber, é entender e analisar,
é, sem nada iludir,
fluente, formalizar.


                          Transpor vales e montanhas,
                          descer no mais fundo do mar,
                          desvendar as artimanhas
                          e assurgente, em alarme, se elevar.


Que voz terá Sofia
pra esse seu imenso dizer?
Imenso que tudo envolve,
E tudo quer arrebatar….
Tão intenso que tudo move
e nada  deixa quieto,
tem mais força a arrastar.


                            Leva consigo sentimentos
                            com cores, cheiros, fermentos
                            da explosão da vida à calhar
                            nos seus bordados elementos,
                            trançados a nos enrredar.



Que força terá Sofia
neste seu poderoso  afirmar?
Poder que forma solidez
perene que se alastrou
e assumiu a sua vez,
presente em tudo que tocou.

                             Força que se fez em vento,
                             sopro cálido  de alento,
                             de busca, de grito, de garra,
                             de voz que nunca se cala,
                             que é presente a todo momento,
                             sem falha e com parra.


Que luz terá Sofia
neste enebriante brilhar?
Sua fragilidade o quanto podia,
fazia o que bem queria,
ardia sem se queimar.


                                   Fosse noite, fosse dia,
                                   da mais tenebrosa escuridão,
                                   do mais radiante e solar,
                                   algo mais percebia  Sofia
                                   e, clara, (…)nos vinha contar.



E lembremos o poema de José Carlos Ary dos Santos, que se eu soubesse dele nunca tinha escrito meu (1/9/21): Retrato de Sophia Senhora dona águia água égua inglesa num jardim de potros gregos mordiscando beleza rega cega do regador de inês em seus sossegos. De muitos anos colhes o magro fruito que depressa transformas em compota receita tão bem feita que de há muito nos açucara o travo da chacota. Porém quando por vezes és de pedra não mármore mas árvore mas dura do fundo do teu mar levanta-se a cratera da nossa lusitana sepultura



































                      Sofia e suas luvinhas brancas. (RETRATO)



   Veio a Senhora de corpo frágil, rosto sereno, pele morena, vestido impecável, bolsa de cromo e luvas brancas, perguntar-me, dizendo boa tarde: A B’lá ? Era uma das filhas do Sr. Martins Costa (Fernando)de quem era amiga. Sofia era um pouco despassarada, errara de corredor.
   Era  frágil no aspecto, olhos vivos, pisava pesado  e tinha esse ar irriquieto que têm todas as pessoas que são grandes, não têm muito com que se percam, só lhes importa seu objetivo. Sofia era um ser que olhava para além …. Quem sabe se além mar, além muito ou além mal? O fato é que era para além, muito além destas coisas  pequenas e mesquinhas das quais são feitas o mundo no dia a dia.
    Respondi-lhe: é no outro corredor e resolvi, instintivamente protetor, escoltá-la para que ela não errasse a loja. Não sabia quem era aquela Senhora ( não a conhecia, sou brasileiro e era recém chegado) e não fazia ideia nenhuma de Sofia, não sabia quem era aquela Senhora, mas gostava dela, logo assim ……..  Aquele jeito, aqueles olhos, ah….aquelas luvinhas brancas…como se o mundo todo fosse poluído e só ela higiênica e limpa, gostei dela logo de cara. Com uma classe e uma forma de estar que a diferenciava, mas com um calor que me aproximava dela, um não sei que de intenso e magnético, com o jeito certo e na dose certa....     Assim era Sofia!

    A B’lá que tinha fama de que era doida de pedra e penso que gostava de mim, era minha amiga e creio que de mais ninguém no shopping, disse-me que eu voltasse mais tarde pro chá. Logo aí, durante o chá, falei tanta coisa, contei tanta história, que fiquei amigo de Sofia e logo à seguir, passei a  saber  quem era Sofia – escritora, poeta, ativista política.Só não sabia que era esse gigante, este ser grandioso e radioso que brindou Portugal com a sua existência. Depois li alguns versos seus nas paredes do aeroporto e achei bem, pelo amor que já lhe dedicava, que fosse reconhecida (hoje sei que foi tão pouco) comprei todos os livros seus que encontrei e comecei a adorar Sofia.

   Passados muitos meses Ela voltou, aquelas visitas eram um ato de contrição de Sofia à  amiga que estava meio maluquinha. Belá tinha ficado bipolar desde há muitos anos. Pois Sofia voltava com alguma regularidade a visitar a amiga  e, indiretamente, a mim, que toda vez era chamado pro chá.  Uma vez Ela soube que minha filha ia nascer e resolveu trazer-lhe um livrinho seu, para crianças. Eu disse-lhe que Ela o daria no seu primeiro aniversário, que eu iria convidá-la para a festa. Parece que Ela sabia… morreu dois meses depois.

    Tinha naquele dia o mesmo ar, a mesma doçura no semblante e a mesma altivez majestática e a mesma distância cálida  que a tornavam sempre bem vinda e esperada onde quer que fosse. Aquele calor que nos aproximava mas nos impunha respeito.

     Eu aí, depois de lê-la, já tinha adoração por Ela, mas nossa relação nunca mudou, Ela não alterou em nada o seu estar, leu algumas coisas minhas, gostou, fez alguns comentários, fiz-lhe um poema do qual me pediu cópia, não deu tempo. (Pu-lo no final do texto.)
Gostou  muito  da parte  do  poema onde diz que   Ela é  reflexo de mar.  Como gostou. Soube que eu havia lido muito d’Ela e que havia adorado, mas Ela via no meu olhar o bem querer desde o primeiro instante e mais gostava ainda por ele ter-se manifestado sem que eu soubesse quem Ela era.  Ah! Isto Ela gostou mesmo..
  Tenho tido tanta sorte na vida, Deus me deu tanta gente grandiosa que ficou minha amiga, mas este modo como Deus me deu Sofia – D. Sofia como eu a chamei sempre, foi muito lindo…..
E então, ao chá, Ela tirou as luvinhas brancas, pousou-as sobre a carteira e com as suas mãozinhas pequenas e ágeis, segurou a chávena de porcelana, parou a meio e disse-me:
“ Gosto muito do Brasil, sempre quis estabelecer uma ponte com o Brasil. Entre o Brasil e Portugal.”
 Eu também e a ponte para mim vai ser minha filha – luso-brasileira – e disse a D. Sofia :
'Ela será a menina da ponte.' Em memória de Sofia que tinha esta grandeza de ver para além das coisas, das circunstâncias, poética e politicamente entendia que Portugal e Brasil deviam estar próximos. E eu achei isto lindo, muito lindo ………………………. Como linda era D.Sofia.

Penso que as pessoas verdadeiramente grandes vêem pra além das circunstâncias, pra  além dos  momentos, pra  além das  situações  …..  Seu tempo não é deste mundo, suas balizas  não são as correntes, as vigentes, por isto, às vezes, cometem  transgreções.
As leis, as regras são feitas para a média e estas pessoas estão acima da média, distantes  da realidade pequenina e sombria do dia a dia que precisa de muito governo e muita polícia para manter a ordem para fazer vigir as leis. Estas pessoas que estão acima do bem e do mal, também não fazem mal a ninguém, às vezes a elas mesmas. Estas pessoas trazem consigo o signo da eternidade, por isto não se perdem na pequenez da existência cotidiana, estão noutra onda, noutra frequência. Preocupam-se com outras realidades que, em geral, não ocorrem aos comuns dos mortais.

                  Quando penso em D. Sofia tenho a forte intuição desta realidade, entendo seu ar majestático, entendo porque era despassarada, entendo seu extremo cuidado no vestir e, mais que tudo, entendo suas luvinhas brancas.º-º-


                                                      POEMA DE SOFIA.


Sofia quer dizer saber,
a sabedoria traz esta convivência
dos antagônicos e dos mutuamente excludentes,
traz esta aparente incongruência,
de opostos conviverem pacificamente.


Altiva e humilíssima,
complexa e simplicíssima.
‘Racé’e acessibilíssima
no ser, no estar, no escrever.
Não aceita o brutal nem o ocasional,
nem a pequenez ou a incensatez.

Reflexo de mar,
onde é preciso dar sempre nome  às coisas,
para as amar,
não devemos esquecer:
Sofia quer dizer saber !

Fio de Ariádne que descortina a existência,
segue o destino da ciência,
que é sem ser.
É preciso não esquecer:
Sofia quer dizer saber.

É visão, é empírica,
permanente evocação,
arquétipo de excentricidadade
é  solução, é satírica,
jardim da recordação,
onde só brota novidade.

Às  vezes é maior pecado a omissão,
que a poetiza combate em todas as frentes.
Educando os pequenos para não se omitirem,
numa vida tão colorida e numa presença a preto e branco,
Sofia é um divisor de águas impossível de esquecer.
Lembre-se Sofia quer dizer saber.

Um saber assim tão fidedigno
não se adjetiva.
É saber somente.
Que volta sempre como a brisa que sopra
do mar constantemente,
sem faltar nenhum dia,
suavemente presente,
no saber, que quer dizer Sofia.



Depois eu ajuntei estas duas estrofes:



Foi-se de mim D. Sofia,
foi tão pouco…
Foi-se pro seu mar,
navegar.
Foi-se e é tão presente!
Quem diria?





Deixou em mim seu rastro, com força,
força que nunca acaba,
pavio que, mesmo que não se  torça,
dá luz que nunca apaga.






























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