domingo, 13 de abril de 2014

Elyseo Visconti Cavalleiro.






Vou morrer com esta saudade!


Só soube hoje, foi a onze de Março próximo passado, esta mania de ler os jornais com atraso, notícia de capa da Folha Ilustrada de doze, tendo em destaque a foto do Elyseo com a Payard-Bolex na mão a filmar, este que era o momento mágico em sua vida, e depoimentos da atriz Helena Ignez, que termina relembrando a casa da Siqueira Campos, na verdade três apartamentos juntos que o avô Elyseo deixara, e as reuniões com o Rogério Sganzerla e com o Júlio Bressane , o maior amigo de Elyseo.

Minhas lembranças mais fortes são outras, de outra cidade, de outro contesto, mas da mesma pessoa: o cineasta Elyseo Visconti Cavalleiro, meu querido amigo, de quem eu não me consegui despedir. E que, informa ainda a folha,  morreu de complicações da doença que ele «estimou», o diabetes e que fez-me ser seu amigo nos últimos vinte e oito anos, dos quais passei mais de quinze sem vê-lo, tendo-o visto quase diariamente nos outros doze. A cidade era Teresópolis, onde ele tinha sua casa de veraneio, porém a este tempo veraniava o ano inteiro, preferia estar em Tere, que no Rio, queria desenhar, pintar, escrever e tratar-se. Fazendo uma dieta rigorosa que controlava o diabetes, exercícios, longas caminhadas e boa alimentação, mantinha-se bem de saúde física e mental. 

Quem o conhecesse assim na primeira impressão, Pitoca, de seu apelido familiar, parecia meio maluco, porque tinha o hábito de falar das coisas, as realidades e a cultura do Brasil, como se fosse matéria do conhecimento do interlocutor. Entrava direto no assunto sem nenhum preâmbuo, falando ligeiro, muita vez acelerado, com sua característica florida, terminando por reafirmar a conclusão torcendo a mão e fazendo um espocar, como um foguete que chia e explode em beleza. Havia concluído a discussão, havíamos chegado a um consenso, e, este merecia ser o remate da conversa, que para ficar bem demarcado era repetido com um crescer de voz, uma parada súbita e um sorrisinho  e/ou arregalar de olhos expressivo, muita vez acompanhado de um gesto, tudo para enfatizar e sublinhar a conclusão da longa discussão, quase sempre das coisas do Brasil que o fascinavam. Tinha sido um espectador privilegiado em muitas delas, pelas amizades familiares. pelo envolvimento ou pelo trabalho de cineasta, onde ressalta o Brasil cabloco do documentarista, fazendo parelha com o Brasil surrealista do criador, já que Elyseo não só realizava e dirigia seus filmes, como os produzia e filmava também, às vezes como câmera-man.

Era um gosto ir lá na sua casinha, próxima a Rodoviária de Teresópolis, relembrar estes fatos e discutir com ele as múltiplas relações que de tudo isto advinham, na verdade com isto ele estava me tirando ao trabalho, sabia, porém achava que eu trabalhava demais, e era verdade, tinha neste tempo em Teresópolis um multi-usos, como se diz agora, misto de Bar-restaurante, mercado, antiquário, galeria, loja de decorações e carpintaria, onde procurava ganhar a minha vida. Começaram pelo mercadinho as visitas do Elyseo. Tinha uma secção de produtos sem agrotóxicos e esta era uma de suas preocupações alimentares. Como tinha também o Antiquário e a Galeria de arte, estabeleci com vários artistas um sistema de trocas. Pagavam o que consumiam ( no mercado, no Bar, no retaurante e às vezes no Antiquário) com obras de arte suas, ou outras. Assim tive dezenas de artistas ao redor do núcleo que construíra em Teresópolis na Rua Manoel José Lebrão, ocupando mais de dez mil metros quadrados das e nas minhas loucuras, como podem imaginar não tinha tempo para me coçar. Porém a uma determinada hora lá vinha o Elyseo em sua bicicleta, em tronco nu ou de camiseta, quase sempre de bermuda, visitar-me, interrompendo os trabalhos do dia. Começava de mansinho dando qualquer notícia nova, pespegava-se num caso, e em algo (um livro, uma gravura, um desenho seu ou familiar, filho de pai, mãe, avô e avó, artistas, entre eles dos maiores do Brasil, um artigo, um cartaz de filme, uma fotografia) e aí começava nossa charla que se desenvolvia por horas, interrompida, muitas vezes, pelos clientes que tinha de atender.A partir daquele elemento que ele trazia para me tentar, por exemplo 'une étampe japonais' como ele gostaria de frisar, das muitas centenas que o seu avô, Elyseo Visconti, havia adquirido na exposição de Paris que as deu a conhecer ao mundo, e foi com elas e com a arte tribal que nasceria a Arte Moderna, e íamos nós discutir a relevância, a importância, o contexto, daquela gravura, dias depois era outra, no dia seguinte um livro, noutro uma foto, e assim por diante, sei que devo bastante da formulação da minha inquietação cultural ao Elyseo. Ele não tinha praticamente outro amigo na cidade, não que não fosse sociável, o era e muito, é que ninguém entendia do que ele falava, portanto não tinha com quem falar. 

Elyseo era um tipo engraçado, cheio de histórias, elétrico, bom amigo, ainda hoje sei que recebi um telefonema (anônimo) que ele mandou alguém me dar para informar-me de algo de muito grave que se passava em Teresópolis, quando eu estava na Galícia, que fez-me não voltar ao Brasil, não queria sofrer, nem fazer inguém sofrer, resolvi as coisas de outra maneira. Ele podia ter-me telefonado, ele próprio, teve o recato, logo ele tão terra a terra, de fazer-se anônimo ao me informar, mas não fugiu a condição de amigo ao fazê-lo. Era assim com suas histórias, às vezes ele era uma personagem delas e se sabia enquadrar como se fosse  um de seus artistas a contracenar no acontecido. 

Dentre as muitas, a que eu considero mais expressiva para reproduzir aqui, é a do festival em Minas que envolveu várias cidades e no qual participou com o Lobisomem: O terror da meia noite de 1974, que são seis latas de filmes que podem ser projetadas aleatoriamente. Os filmes longos, muitas vezes, estão em várias latas, que guardam as bobinas, que seguem uma sequência, 1, 2, 3, 4, e assim por diante, é a sequência do filme. Elyseo fez este filme que não importava a sequência, em qualquer uma estava uma alegoria diferente (era como se fosse outro filme) e podiam, como disse, ser projetadas em qualquer sequência. Contava a história de uma família que vivia num ônibus abandonado, e que tinha hábitos noturnos, o que dá razão ao título. Claro que um espectador, com este título, acredita que aparecerá um lobisomem, e nisto o cartaz que o apresentava ajudava, pois  tinha o lobisomem desenhado a escorrer sangue, claro que a expectativa era ver um filme de terror, onde apareceria o dito lobisomem. Numa cidadesinha do interior de Minas Gerais, com apresentação de estreia, e com o tal cartaz pendurado à porta, a expectativa foi grande e encheu o cinema. Começa o filme passa-se a história da família, continua, vão se trocando as bobinas e nada de lobisomem, vai caminhando para o fim, e a espera do lobisomem atinge um clímax, acaba o filme, sem lobisomem bem entendido, e os espectadores, sentindo-se defraudados, quebram o cinema todo! Grandes críticas, o nome de Elyseo sai em todos os jornais, é considerado maldito, o circuito comercial diz que Deus o livre de apresentar semelhante filme. Ficam as seis latas por testemunho. Elyseo no intuito de preservar todo seu patrimônio artístico como cineasta, foi a Portugal, ao ANIM, e lá depositou os seus celuloides, que tinha em Teresópolis por ser mais fresco, mas que sempre corria o risco de incendiarem-se num dia de calor, foram para Portugal, porque o Brasil não dispunha de ambiente onde os conservar. Na cinemateca de Lisboa estão guardados para a posteridade, onde um dia, quem sabe, se recordará o meu amigo Elyseo com uma sessão do Lobisomem, numa projeção aleatória e, talvez, aí, então, entenderão esta criatividade ímpar que se chamou Elyseo Visconti Cavalleiro. 

Há três anos voltei ao Brasil, após doze anos ausente na Europa, queria muito rever meus bons amigos, muitos do tempo de Teresópolis, como Paulo Rabello de Castro, Ivan Lins, Angelo Rietti, Aluisio Gavazzoni entre outros, e Elyseo Visconti Cavalleiro, meu amigo Pitoca. Tendo ido duas vezes à casa da Siqueira e uma à de Tere, não o consegui encontrar, ficar-me-á esta saudade para sempre.



Puro Dadá :
                      É com sabor
                      Com desamor
                      Rubor e fulgor
                      E le Cabaret, le Cabaret, le Cabaret
                      VOLTAIRE
                      Sem senso
                      Dissensos e contrassensos
                      Pura intenção
                      Com amor e sem pão
                      Que sabe-se da coisa mais louca
                      E sabe a toca que brota, soa, é oca:
                     "O pensamento se faz na boca."
                "Na boca" !!!














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