quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Lendo as cartas de Mandela.




Com uma letra muito regular, indicadora de sua fluência cultural, com raros erros ou enganos, com uma lógica vernácula onde transpira conhecimentos muito para além dos de seu país, expressa-se em inglês, idioma de múltiplas faces, que exige um certo rigor na linha de expressão para ser rico, e a linha que Mandela percorre revela sua riqueza vernácula, mesmo em textos íntimos como são estes a que tive acesso, escritos à sua amada, e na pior e mais cruel situação que um homem se pode encontrar, preso injustamente, sem sentença definida, ou seja por tempo indeterminado. Nada lhe rouba a paz de espírito, nada lhe subtrai a serenidade altiva e consciente, as cartas revelam a face de um homem muito para além de sua condição.



São cartas a Winnie, a enfermeira com quem era casado, e a quem depois o sucesso sobe a cabeça, julgando-se mais importante que Nelson Mandela, perdendo a visão ajustada de sua importância relativa, e da grandiosidade humilde do homem com quem vivera. A serenidade revelada por Nelson Mandela como se visse o que o futuro lhe reservava, como se soubesse que viria a ser um grande nome da história mundial, sem hesitações, sem dúvidas, sem ódios e sem rancores, desde sempre, como que numa preparação consciente e volitiva do porvir que lhe aguardava, para acabar com os ódios e as misérias de seu país, a África do Sul dominada por rancores que a dividiam e geravam radicalização irracional, a pior delas, a racial, onde se odeia só pela cor da pele, maior estupidez impossível. Em nenhum momento Mandela deixa-se influenciar, nunca se deixa envolver por essa avalanche de ódio que dominava seu país, a mesma que o havia posto na prisão de onde escreve essas cartas, e onde jamais perde a tolerância e a sua capacidade de perdão, a interlocutora certamente não o compreendia, e procurava incita-lo ao ódio, mas com a serenidade verdadeira da convicção, nunca se afasta do perdão, sentimento maior que cria, que gera, que revoluciona, como o do padre de Victor Hugo nos Miseráveis que com seu perdão transforma definitivamente Jean Valjan, o perdão de Mandela vai transformar um país inteiro.

As cartas são uma revelação, uma água clara onde transparece a personalidade de um homem que conforma seu caminho sem hesitações, sem dúvidas, e, o mais importante, sem rancores, que confronta seu destino, não se perdendo no acessório. Como Príncipe que era (Não se esqueçam que Mandela nasceu príncipe da Suazilândia.) e como jurista (advogado) entendia perfeitamente que a autoridade só poderia vir de um valor moral, ético, sem mácula, e todo confronto, todo ódio é mácula indelével, portanto vai construindo na prisão esta superioridade moral que o distinguirá de todos, mas com afabilidade, com proximidade, com calor humano, para nunca perder o rumo da fraternidade, único valor humano que importa na relação com outro ser humano, posto que com esse valor em abundância se conformará o tripé que soergue uma sociedade justa e de princípios, como o pensamento revolucionário francês já o evidenciara, e que Mandela na sua busca concretiza absolutamente para legar os outros dois, essência que sustenta o que é hoje a África do Sul que criou.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

The War Man.








"The Rocket Man" é como chama a Kim Jong Un, Donald Trump, porém o 'epitetista' valha o neologismo, merece também um epíteto, e aí está o que lhe assenta bem, The War Man, por ser seu tema constante, porque suas declarações voltadas para esse tema estarem sempre aparecendo, o que vai revelando o que ele, Donald Trump, tem na cabeça, entretanto essas revelações sucessivas evidenciam uma preocupação quase obsessiva com o tema da guerra, e, creio mesmo, que foi com essa intenção que Trump foi eleito. Como sabemos todos os presidentes têm agendas escondidas, interesses a que servem ocultamente, e muitos se podem notar pelo financiamento das campanhas, bem como pela temáticas dessas voltadas para esses pontos que, ocultos, não podem deixar de constar das campanhas para se legitimarem e, de futuro, quando aparecerem na governação não poderem ser bloqueados como exógenos, posto que faziam parte dos programas de governo. É bem verdade que ninguém tem como programa de governo a guerra, nem o poderia num mundo que se pretende civilizado, porém a forma como irá responder como presidente a situações beligerantes, ou a conflitos instalados deve ficar clara para o eleitorado, justificando destarte as futuras decisões que o governante venha a tomar nesse âmbito. Assim Trump, The War Man, nunca escondeu sua predileção por respostas truculentas a países que oponham-se à sua política, e soluções agressivas em caso de conflitos que se proporcionem. Ademais toda a indústria bélica o financiou, portanto não podíamos esperar nada de diferente do The War Man.

Entretanto com o surgimento do The Rocket Man, e dos rockets propriamente ditos, temos uma situação muito favorável à beligerância que se instalou na Casa Branca, por um lado até com alguma compreensão por parte de toda a gente, porque esse estúpido do Jong Un dá todas e mais algumas razões para a beligerância com sua atitude provocadora, que terá evidentemente suas justificativas, mas que no final, face da desproporção dos meios e da ameaça que representa, é apenas provocação fútil, que permite por seu turno, que. se algo de agressivo ocorrer, mesmo por acidente, haja uma retaliação brutal, e venhamos a ter a primeira guerra termo-nuclear da história da humanidade, nada mais propício que dois psicopatas com poder com as mãos sobre os botões dos rockets.

A ICAN International Campaign to Abolish Nuclear Weapons, agora Premio Nobel, ressalta pontos deste confronto, evidenciando a perda de controle de ambas as partes. O Congresso americano agora está avaliando a capacidade de Trump em comandar um ataque nuclear. É bem provável que não seja obedecido. O 'establishment' já percebeu nitidamente as intenções subalternas do Sr.Trump e se movimenta para dete-lo. Um confronto dessa ordem entre o homem na sala oval e a estrutura mais profunda da administração americana cria ruptura muito aguda na linha de comando e na imagem de respeitabilidade dos EEUU, que é muito difícil de recompor. Os pretextos estão estabelecidos, os interesses movimentam-se, essa ida a Região Ásia-pacífico, é mais uma evidência da agenda escondida, a pretensa mão estendida para o "little rocket man", mais um subterfúgio para atender as imposições do establishment, podendo justificar muita coisa que venha a suceder.

Eu temo pelas reais intenções do Sr.Trump, já sabemos de muita coisa que mostra que ele atua sempre com duas caras, que é perigoso, que tem envolvimentos obscuros, estejamos atentos!

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Um "maluco beleza"...




A expressão se disseminou a partir da música homônima de Raul Seixas, ele mesmo um maluco beleza, expressão que serve para designar um extravagante, alguém que foge aos cânones sociais, e projeta sua personalidade diferentemente, e que, certamente, provoca estranheza e incompreensão.

"A usura é um cancer no azul..."

Esta forte imagem que me marcou, eu que venho de uma família com muitos usurários, gente que só soube amealhar pelo efeito de amealhar, nada mais, sem  maior perspectiva social, humana ou pessoal, que a de deter dinheiro. Aonde isso leva? Esse ponto leva a uma grande discussão. Entretanto a imagem de que esse procedimento é desruptivo, e que destrói a beleza, destrói o entorno, a proposta de uma vida incluída numa razão importante e num objetivo maior de existência, posto que existir é se perder no universo da existência, traz-nos a figura de seu autor, o grande poeta Ezra Pound, que esteve internado  doze anos no St. Elizabeths Hospital para alienados, ele que tinha uma visão tão lúcida, o que prova que às vezes é preciso mesmo se ser louco para ter uma visão lúcida nesse mundo distorcido.


"Enquanto você se esforça para ser um sujeito normal..."


Penso que todos nos esforçamos, mas o busílis é que a norma é a medida da mediocridade, média que é de gente excepcional junto com um sem número de estúpidos e gente banal, insignificante a nível de entendimento, baixíssimos QI, dando um valor muito baixo para a média, o que leva a muita gente ser excluída e incompreendida na sua forma de ser e manifestar seu entendimento do mundo. Ezra Pound certamente foi um desses, ainda que pudesse ter qualquer tipo de comportamento desviante por causa de sua aguçada perceção.

O adorável livro de Daniel Swift sobre a vida de Ezra Pound recentemente editado com o sugestivo título de Maluco (ou mentalmente perturbado) Bughouse no original em inglês, conta a história da vida do grande poeta, considerado insano aos sessenta anos, tendo passado mais de doze anos da vida internado, e nos conta a história de uma maneira sugestiva e com uma visão não preconceituosa.


"Eu vou ficar com certeza . . ."


Não apontando o dedo ao poeta por sua condição, nem esquecendo o amigo por sua situação excepcional, iam visita-lo ao St. Elizabeths nomes como Elizabeth Bishop, John Berryman, T. S. Eliot, Charles Olson, William Carlos Williams, Robert Lowell, que, como nos conta Daniel Swift, sentavam-se com ele (Ezra) no chão do hospital para longas conversas, em suas frequentes visitas. A doença mental que inspira uma repulsa ainda maior que a maioria das doenças fisiológicas, e lançam o doente no ostracismo, não levou Ezra Pound a esta condição miserável de abandono, pelo apreço que lhe tinham seus amigos, que continuaram o visitando, acreditando no que afinal de contas era aquela situação, uma maneira de evitar sua condenação por envolvimento com o fascismo, retirando-o da terrível condição de pária em que fora lançado. Desde o pós-guerra até 58 ficará 'internado'. Ainda viverá até aos 87 anos em Itália para onde seguiu depois que foi libertado do hospital de Washington.

Porém o que fica dessa história é a beleza da presença dos amigos, sua 'recuperação' social, e o valor enorme de sua poesia que sempre a continuou fazendo como uma profunda análise social e humana, a que seus versos evocam. Tendo influenciado além dos que o visitaram, já mencionados, nomes como Yeats e Joyce. Com a sonoridade da língua que tanto sublinhava estendeu sua influência a muita gente, mesmo até a esse que aqui vos escreve, que acredita piamente na musicalidade da poesia juntamente com um forte poder da imagem que concite. E aí somos todos malucos belezas. . .


domingo, 5 de novembro de 2017

Terrível retrato do Brasil.





Recebo o New Yorker onde esta estampada uma foto do Deputado Bolsonaro, esse equívoco político-eleitoral, e a informação terrível de que a cada dez minutos uma pessoa é assassinada no Brasil e ainda mais uma além dessas para perfazer o total de sete por hora que são 168 (175) por dia e os 60.000 anuais de que nos fala a manchete do New Yorker, esse descalabro que por si só é um susto, um absurdo, números de guerra, e uma incompatibilidade com a ordem, a democracia e a justiça, pilares de um país que se queira decente, uma falência do Estado de Direito, como nas guerras. E o Brasil está em guerra  com o que?

Recebo também, alguns dias depois, a informação de que o Movimento dos Sem Terra estaria a apoiar Bolsonaro em uma eventual candidatura a presidente. E aqui devo em breves linhas dizer quem é Bolsonaro, para os meus leitores de outros países, que não o Brasil, que desconhecem a figura. É um deputado federal que repetidamente se elegeu sob o lema : "Bandido bom é bandido morto." acirrando para uma extrema a necessidade absoluta de combate ao banditismo, que tem se institucionalizado no Brasil, no sentido de evidenciar sua intolerância com a situação, intolerância que é de todos nós, mas a diferença é que não advogamos nem a morte, nem uma ação excessiva da polícia, ou a atribuição de poderes excepcionais, a quem quer que seja, para o combate ao crime. Fato é que os números que divulga o New Yorker, são uma anormalidade que põem em causa a primeira função do Estado, e também a segunda, a saber, proteger os seus habitantes, e administrar Justiça, o que evidencia a falência do Estado brasileiro em suas funções mais básicas, e estabelece uma situação de farwest, para sermos ligeiros na denominação do estado calamitoso a que chegou o Brasil. O deputado Bolsonaro numa sucessão insistente de sua propaganda eleitoral, e na divulgação de suas ideias, radicaliza as soluções, ganhando visibilidade à conta disto; que essa emergência do deputado se verificasse como uma radicalização perseguida pela parte doente do Brasil, que, não entendendo o que verdadeiramente é solução para esse atrito social que degenera em mortes e assassinatos, os mais cruéis, escolhe um desvio degenerado como solução, como tantos defendem a ditadura e outras a repressão brutal, em vez da solução que bem sabemos ser uma política de ascensão social, para que todos possam pertencer a uma classe social mais elevada (e essa ascensão dá-se com educação de qualidade, emprego em quantidade, salários com remuneratórios justos, presença do estado na saúde, na formação de carreiras, nos transportes, etc...) permitindo destarte que se formem indivíduos com cidadania plena, e não parias sociais, excluídos marginais como se formaram aos milhões no Brasil. O Lula mostrou bem com sua governação como se reverte o processo de exclusão, e como se formam cidadãos. Não podendo lutar contra todos os interesses instalados, Lula, decerto, não resolveu o problema dos sem terra, esses que agora dizendo-se cansados entregam-se a Bolsonaro. Esquecem-se que o que mexe a política é o fundo ideológico que a conforma, e que há, mesmo para além de posições de interesse eleitoral, nesse fundo, toda a motivação que divide as pessoas, por isso chamamos a sua organização em grupos, de partidos. E o fato é que a extrema direita, a qual o sr. Bolsonaro pertence, poderá assumir papéis da esquerda, como a suposta defesa da Reforma Agrária, ambição já centenária num Brasil com problemas que se acumulam, e que levaram a radicalização e à formação do MST, que agora, declarando-se cansado de aguardar uma solução, abraça todas as reversões da política, apoiando ao deputado Bolsonaro. É uma solução de absurdo, filha do desespero, posto que desespera quem espera, posto que este assumirá, estes assumirão esta faceta, este aspecto de pretensa salvação, só para pôr as mão no poder, revertendo papéis claros, criando ambiente onde é tudo ilusório, meramente político, falso, um jogo de sombras.

    A conclusão desses números é só uma, esse Brasil do desgoverno, da falência do estado de Direito, que vivemos hoje, é indecente, ou seja indecoroso, obsceno, desonesto. E devemos nos fixar nesse último sinônimo, desonesto, e nos questionarmos COM QUEM É DESONESTO? E a resposta é uma generalização, como se todos estivessem a enganar todos. Uma reversão da ordem das coisas que permite que alguns acreditem que irão encontrara a solução na radicalização, que a terra se consegue invadindo a terra alheia, que a 'vida' se consegue com a morte do próximo.  Essa inversão dos valores é que levou o Brasil a essa situação de calamidade pública em que se encontra. E, infelizmente bem o sabemos pelos exemplos históricos, que em situação de calamidade pública tudo pode acontecer, que com as radicalizações formam-se, às vezes até se institucionalizam, reversões da ordem como solução mágica a querer criar ordem, esta que todos desejam, em sendo justa e, acrescento eu, em sendo democrática, pois bem sabemos aonde nos levam os regimes de força. Lembremos que a Revolução Francesa degenerou na guilhotina e formou um Império para depois voltar ao que era antes, aos mesmos Luíses. Que a Revolução Bolchevique (Russa) degenerou no stalinismo de 60 milhões de mortos, para termos um czar outra vez em Moscou chamado Putin, voltando ao capitalismo mais selvagem, isso para só citarmos dois exemplos.

E essa desonestidade, que se propalou pelo Brasil fora, é inquietante porque quer enganar-se a si mesma, como o MST a escolher Bolsonaro, e mais grave nisso tudo é a reorganização paralela ao Estado que essa mesma desonestidade permitiu com a formação de grupos de extermínio e toda uma cultura de terror, sim de terror, que é a existência de uma milícia, uma grande quantidade de forças para-estatais que atuam livremente, e efetivamente impondo ordem alheia ao interesse geral da cidadania. E se tem como reflexo, sendo também reflexo por si mesma, temos aí dois espelhos um na frente do outro, com uma situação dos seus representantes políticos, como os degenerados que são, como a representar uma degenerescência, como a configuração final, fatal, da subversão de valores traduzida no seu ápice, reflexos de reflexos. É como se tudo e todos os assassinos, os ladrões, os contraventores estivessem justificados, posto que fazem o que faz a alta esfera do poder e seus representantes eleitos. ROUBAM! MATAM! TRAFICAM! (traficam influência e não só!)

Generalizou-se essa situação no Brasil, de tal ordem que o povo passou a desejar a transformação de um poder mais efetivo, o judiciário, no poder de regulação e atuação, tomando o lugar do executivo, do governo, e quase também do legislativo, entregue a uma maioria corrupta e negocista, que para além de todas as medidas só vê seus interesses como se não houvesse amanhã, distorcendo assim todo o edifício longamente construído das instituições. É plenamente compreensível o desespero em que se encontra um cidadão, sem nada poder fazer, vendo tudo corrompido, vendo tudo infectado, vendo a falta de vergonha dos que o representa, vendo o roubo e a corrupção imperarem sem máscaras, ou cujas máscaras são reveladas e expostas pelo terceiro poder que na medida do possível e até do impossível, o judiciário vem tentando por cobro aos descalabros de toda ordem que se verificaram no Brasil, muitas vezes com excesso. O Brasil está em guerra consigo mesmo, obviamente não poderá ganhar. Se ganha, perde.

Sei o quão difícil é clamar por ordem em meio ao caos, sei perfeitamente que as velhas soluções de compromisso (o método democrático eleitoral é uma solução de compromisso) parecem gastas, sei que desejar eleições parece dizer: 'É tirar um ladrão para botar outro.' Sei que tudo parece muito confuso e sem caminho, mas sei também que os caminhos de exceção não são caminho algum. E uma existência abjeta, por tudo que representa, como o sr. Bolsonaro é o último que se possa desejar, sendo uma hipótese não aceitável, porque não se pode desejar o absurdo, ainda que ele, muitas vezes, nos pareça apetecível.


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Meio milênio de 95 teses que mudaram o mundo.












Sim foi há 500 anos, cinco séculos atras quando um monge das hostes de Santo Agostinho, chamado Martinho, que discordava das posições negligentes, relapsas e/ou distorcidas da Igreja a qual pertencia, a Católica Apostólica Romana, que recusando-se a debater, impunha um silêncio e uma obediência que Martinho não soube acatar, e pregou na porta de sua igreja noventa e cinco teses que tocavam em pontos cruciais do cânone estabelecido, não para  efutá-las, mas para discuti-las.

Tinha 34 anos, e com esse ato estabelecia um protesto contra a intransigência da Igreja em matérias que deveriam ser discutidas, posto que a exegese delas dentro do próprio seio da Igreja divergiam,  e era apenas isso que desejava, discutir. A realidade, como soe acontecer muitas vezes, ultrapassou-o, tornando-o líder de um cisma que deu origem a uma nova religião, a daqueles que protestavam, protestantes como ficaram conhecidos, por quererem ter Direito a discussão, o que a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana negava.

Entre as teses que defendia estava não aceitar que o perdão de Deus pudesse ser comprado e vendido, e na época havia um grande vendedor de indulgências, Johann Tetzel, que em grande comércio negociava o perdão divino. Revoltado com isso, Martinho se opôs vivamente, recusando-se a atender aos pedidos do Papa Leão X e do Imperador Carlos V para retratar-se, mantendo suas teses, sobretudo a de que Deus oferece gratuitamente através de Jesus cristo Seu perdão, e por isso foi excomungado, mas  manteve-se fiel a seu entendimento. Outra coisa que não entendia era a divisão da Igreja entre clérigos e leigos, entendendo todos os batizados como sacerdotes. Aliás é a palavra que deixa o Cristo sobre o assunto. A questão da justificação pela fé, que é mesmo o caso do perdão divino, só em 1999 foi acordado entre as Igrejas, a católica e as que Martinho gerou, reconhecendo que a tese de Martinho estava certa, seu entendimento de que a fé e sua justificação não era posse da igreja, e que todos e cada um tinham direto acesso a ela, justificando-se perante Deus pela sua fé.  Quem ler as teses de Martinho Lutero à luz do texto bíblico, logo se dará conta de que lado estava a razão.

Hoje passado este meio milênio sobre os fatos, temos a Igreja Católica ainda muito resistente em suas posições contra as teses que dividiram a fé cristã, e que criou a enorme religião Protestante em suas múltiplas denominações, e estabeleceu um confronto que passou por guerras, perseguições, intrigas, e outras desgraças, num efeito de laceração do que haveria de ser mais relevante na Igreja de Cristo, sua união.




terça-feira, 24 de outubro de 2017

A Nova Lei.







Dois Juízes Desembargadores do tribunal da Relação do Porto, com uma sentença que evoca o Código Penal Português do século XIX, já ultrapassado e a Bíblia, em sua parte também já ultrapassada, para acusar a condição de adultera a uma mulher em um processo com os mais fortes adjetivos que encontraram, numa apreciação verdadeiramente medieval, onde evoca até a lapidação, e que é notícia por ter levantado a indignação pública contra a forma da decisão, e, portanto, suscita os reparos seguintes: quanto aos encômios valho-me para responder a isto com recomendar a leitura de meu artigo de maio de 2013 intitulado Mulher, sempre a vítima preferencial.

Entretanto quanto as citações bíblicas consolido aqui uma apreciação mais alargada do fato desses anormais se valerem de textos arcaicos, e não mais em vigor, para justificarem àquilo a que se chama Justiça, posto que um Juiz ao decidir, devendo restringir-se à letra da Lei em vigor, mais aos fatos, e à sua convicção que deles resultam, deve tão somente decidir à luz dessa realidade sem resvalar para sentimentos pessoais, crenças, ou mesmo posições de natureza ideológica. Um Juiz não é ele quando julga, é os fatos à luz da Lei. Tudo o mais fica de fora, poderá ele não concordar com o que a Lei aprecia dos fatos, mas não pode evocar essa discordância para se afastar da disposição legal. Fazer isso é criar precedente pernicioso que afasta seu julgamento da meridiana Justiça.

Entretanto o curioso no 'decisum' desse anormal que legitima a violência doméstica, contra a qual a sociedade tem se batido, repudiando-a, com mudança de comportamento e evidente reflexo na Justiça, e em suas condenações propagadas, criando uma nova e bem vinda cultura de entendimento das relações humanas, com jurisprudência, e, assim, resgatando a mulher de sua condição de ser oprimido pela força física de seu mais frequente agressor, o próprio companheiro, entretanto, repito, é que a evocação bíblica mostra total desconhecimento do texto bíblico em sua totalidade e realidade completa. Vejamos!

Evangelho quer dizer literalmente boa notícia, boa nova, ou seja  traz em si a ideia de que vem trazer até nós, após os milênios de uma Lei de beligerância, uma Nova Lei, a Lei reformulada pelo amor de Jesus Cristo, que reafirma e contradiz valores que considerava maus para as pessoas. Quando falamos Bíblia no Ocidente, incluímos esta importante parte dela a que chamamos evangelhos, e que nos dão a Nova Lei, resgatando milênios de opressão e violência legal, segundo a qual imperava a consciência legislativa de Talião - Dente por dente, olho por olho - Mesmo para o Torá, que guarda a Velha Lei,  não estará bem a letra morta dessa Velha Lei, posto que o trabalho vivificador rabínico, feito ao longo de centenas de gerações, deu nova forma a Velha Lei.

Porém entre os cristãos é absolutamente claro que Jesus reformulou a Lei, com suas palavras e com seu exemplo, com sua forma vívida de interpretar as relações humanas, como máxime Juiz que é, e com a presença do amor na prevalência da Justiça como forma de regular essas relações.

Logo resta relembrar a esse anormal que tendo Jesus encontrado uma mulher dita adúltera pronta a ser lapidada, apedrejada por um grupo de cidadãos que aplicavam a Lei antiga, reformulou-a com o seguinte gesto: Pôs-se à frete da mulher e desafiou aos do grupo que se preparavam para lapida-la, já com as pedras na mão, que atirasse a primeira pedra aquele que nunca tivesse pecado. E por fim dá sua sentença quando diz à mulher que vá e que não peque mais. Esta a Nova Lei para quem crê na Bíblia ou para quem a evoca, e não os ditos da Velha Lei que diz que a adúltera será punida por apedrejamento. Só por sofisma, ou ignorância, se pode hoje evocar o texto bíblico para justificar a condenação da mulher em benefício do homem que a agrida.

Os Senhores Desembargadores hão de decidir qual das duas razões lhes serão atribuídas.


5/12/2017 - O conselho superior da magistratura condenou aos dois juízes. Não podia ser de outra forma.

domingo, 22 de outubro de 2017

"Oh Gente da minha terra...."





Há certos cantores que só existem para glorificar àqueles que imitam. Outro dia ouvi alguém, já não me lembro quem, a cantar "Gente da minha terra" este poema que nos deixou Amália, e é uma revelação de um momento de iluminação de D. Amália, e que Tiago Machado musicou, e ao qual a cantora Marisa dos Reis Nunes Ferreira deu uma dimensão fabulosa, com a responsabilidade que tinha de cantar um poema de Amália, a moçambicana que queria ser fadista, num disco que se chamava Fado em mim e que era sua estréia, onde canta para além desse fados que foram imortalizados na voz de Amália, e para os quais Mariza soube procurar e encontrar o seu próprio caminho a interpreta-los, e subitamente me apercebi que devia um texto a Marisa, pela sua grandeza, pela sua individualidade e por sua simplicidade.

Isto me ficou na cabeça: O que dizer? Como dizer? Até que vi uma homenagem que a RTP fez há muito tempo a Edith Piaf, onde a 'interpretava' uma cantora, boa cantora, mas para ser Piaf, só Piaf.
Mesmo se eu tivesse a voz de um Pavarotti e me pedissem para interpretar Caruso, eu declinaria com a afirmação de que ninguém pode interpretar Caruso, mas há muita gente que não se dá conta e com isto, apesar de muito bons cantores, cumprem a única função de glorificarem aos que imitam.

Os houve muitos, e um dos últimos foi uma moça, que canta bem, mas que quis por força ser Amália, e deu em gritadeira, até que desistiu e desapareceu, é pena, pois podia fazer boa carreira se não tivesse querido ser Amália. Quem tem ouvidos de ouvir sabe que só há uma Amália, uma Edith Piaf, um Caruso. Seres com luz própria que encontraram um caminho de esplendor e nos proporcionaram momentos de maravilha com a cristalização de certos momentos em seu repertório. Quem cantará "Povo que lavas no rio" ou "Foi Deus", ou "Coração independente", ou mesmo a "Casa da Mariquinhas", com o poder de interpretação, a força, ou a densidade de D. Amália? Quem cantará  "Non, je ne retrete rien" ou La Vie en rose", ou "Padam, Padam" ou o "Himne à l'amour" com os vibratos de D. Edith? Quem terá a maviosidade de D. Enrico no "E lucevan le stelle"ou no "Core Ngrato" ou mesmo "O sole mio"? Quem?

É, ao ouvir esses intérpretes que os imitavam ficava claro tudo que não estava lá, a 'décalage', o 'gap', o vazio e a distância para chegar a qualquer um desses cantantes. E com Marisa dava-se o mesmo! Mariza conquistou um lugar no cenário da interpretação vocal da música, como intérprete e como fadista, sendo que nessa segunda condição não seria nada fácil com o vácuo deixado por Amália, e com as tentativas anteriores de muitos em preenchê-lo, e também por ter o 'phyique de rôle' inadequado, por ser moçambicana, e mesmo por ser mulata. Porém é só ouvir Marisa e lá está tudo, toda a magia mister de um grande intérprete, e tudo é ultrapassado. Oh gente da minha terra, só a maravilha da voz e o sentimento importam, e logo todas as almas serão tocadas, e far-se-á a magia da interpretação, única, absoluta, verdadeira, manifesta.