sábado, 26 de agosto de 2017

O melhor Fernandes. . . O homem que escolheu seu nome.







Se escrevêssemos em catalão, vocês logo se dariam conta de quem falo, vejam o título em catalão: El Millor Fernandes, que era mesmo o melhor em tudo que fazia e não haveria quem o ombreasse, chamasse-se Fernandes, ou não. Milton Viola Fernandes, como queriam seus país, e que pela má caligrafia do escrivão que assentou seu nascimento, pode vir a ser o homem que escolheu seu nome, quase, posto que na certidão que requereu aos dezessete anos viu que o que estava escrito não era Milton, o traço do t estava sobre o o parecendo um circunflexo, e o ene era como um erre, daí Millôr, o que parecia ótimo, artístico, diferente,  único mesmo, e optou pelo nome Millôr em vez de requerer uma retificação do registro de nascimento, nascendo então o grande Millôr Fernandes.

Eu o conheci na Codecri, onde o rato que ruge, que aparecia nas páginas do Pasquim, nos recomendava livros, com assuntos que nos espicaçavam a imaginação e mostravam um outro Brasil oculto, que eu desejava, e já com essa minha mania de livros e documentos, fui várias vezes lá no alto de Ipanema, na casa sede da editora buscar os livros que já não se encontravam mais a venda, e pude conversar com os donos, e dizer muitas coisas, eles eram interessados em quem se interessava por eles, e tive longos papos, os de um garoto entre os 19 e vinte e tais anos, o tempo que durou minhas idas lá, e aqueles que encontrava na sede da editora. Lembro-me perfeitamente do dia em que encontrei Millôr, já bem careca, ele ria muito com as orelhas, e tinha uns olhos penetrantes, porém sempre um homem simples, despretensioso, falava sem nenhuma afetação e discutia comigo normalmente, muito embora fosse extremamente mordaz.

Vi, por aqueles dias, também o Henrique Filho, o Tarso, o Ziraldo e o Zélio, o Claudius, o Redi, o Ique, e até o Sérgio Cabral, era muito engraçada a sede da editora, você entrava pela varanda, dava na sala da casa onde se abriam portas para os outros cômodos da casa, e quase nunca tinha ninguém na sala, era tudo muito informal, algo que me agradava bastante, e apontava para outro mundo, onde as pessoas não se obrigavam a ordens e estruturas, era um Brasil que podia dar certo, e o Pasquim, o símbolo e o responsável daquilo tudo nos abria para uma realidade tão diferente...

Agora que se completaram cinco anos de sua morte e sabemos que o mundo ficou muito mais pobre sem Millôr, esta alma tão vivaz e irascível, que canalizava sua indignação para a transformação social e para fazer refletir as pessoas "... livre pensar é só pensar . . .", "Fábulas fabulosas" de alguém que compreendeu o Brasil como ninguém, como os que o governaram o deveriam ter compreendido, e feito com esta análise e entendimento a libertação das forças potenciais do Brasil, como o Millôr fez. Sim porque ele abriu as estradas a um Brasil mais verdadeiro, revelando "Que pais é este?", aquele que nós sonhávamos, o que indignadamente levou o Legião Urbana a cantar na década seguinte, e que assim fez com que todos guardássemos na alma a esperança do futuro, essa indeterminada e difusa manifestação de que algo virá nos redimir, algo que chegará inexplicavelmente, como digo num poema.

No seu "Livro branco do Humor", que foi o que primeiro que li, vê-se o olhar crítico, onde a gozação mostra as contradições e ri-se, fazendo-nos rir delas consigo, até os Guia Millôr Fernandes do final, sempre se encontra o mesmo homem empapado na sua brasilidade, enganchado no seu tempo, embrenhado na selva escura da alma, desvendando-a. Seu teatro é bem revelador desse desassossego (e eis aqui palavra apropriada) na "É", que logo que surgiu fui ver no Maison de France, que me era mais acessível que os teatros de Ipanema, pois eu vivia em Niterói, e com o casal Fernando e Fernanda protagonizando, eu, que com meus vinte e um feitos naquela mesma semana, pois foi quando soube que havia estreado a peça, e que era do Millôr, e tinha a atriz que eu gostava tanto fazendo par com o marido no papel principal, foi uma primeira revelação para mim a força do teatro de Millôr, bem como em muitas outras peças suas, será sempre o mesmo Millôr, livre e impetuoso, benigno e contraditório, como um Haikai vivo, desses que ele gostava tanto, perorando "por um mundo Millor".


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