Era o meio de Setembro do não passado, portanto há bem mais de um ano, e eu fazia perguntas sucessivas sobre as possibilidades, as necessidades do PCP e a inviabilidade também, dada às mudanças conjunturais que já antevia, da participação dos comunistas na governação portuguesa. O artigo se intitulava: Um governo com, ou do partido comunista. E, permitam-me a vaidade, acertava na mosca, 'na mouche' como preferem dizer os portugueses afrancesadamente. Tá tudo lá, para que não se dêem ao trabalho de irem procurar entre centenas de artigos, lhes facilito a vida, segue-se o texto:
O eleitorado por toda parte, e em particular o europeu, está descontente, desiludido, e distanciado dos partidos que sempre fizeram a alternância do poder, sendo eleitos por mandatos sucessivos desde que se estabilizaram no pós guerra as correntes de pensamento dominantes, polarizando-se durante a guerra fria, anos 50/70, com uma demarcação mais efetiva entre esquerda e direita, pela força da oposição entre os que projetavam suas ideias como do seio da democracia em oposição às que vinham do leste europeu, da autocracia, para lá daquela cortina que o discurso de Churchill caracterizou como de ferro. Dispensando todos os excessos e invenções de caráter dramático, que visavam assustar os ingênuos e dividir as águas de dois mundos mutuamente excludentes. Os comunistas comiam criancinhas, lembram-se?
Caído o muro de Berlim, rompeu-se e esfrangalhou-se a cortina com sua queda como símbolo central, os interesses mais inconfessáveis ascenderam, e a credulidade e a pureza de uma certa esquerda perdeu-se para sempre. Viu-se na Rússia comunista surgirem titãs e 'tacoons', políticos e econômicos, viu-se toda a presença do proletariado ser afastada para dar espaço à ganância desenfreada e a um capitalismo mais selvagem que a maior selvageria do verdadeiro capitalismo, cristalizando-se lentamente com garras profundamente fincadas nos países por ele tutelado, surgindo, nos ex-comunistas, uma ganância desmedida, filha dos muitos anos de coerção, era como se vivêssemos a saga da Igreja do diabo, tão bem desenvolvida no conto machadiano. Muitos partidários que mantinham-se nas suas convicções, perderam a coragem de continuar a chamar de comunista seus partidos, em meio a uma democracia, sem terem mais o bloco de leste, a grande União, para apontarem como exemplo de desenvolvimento e equalitarismo, se é que algum dia foi exemplo quer de uma coisa ou outra. Não obstante toda esta mudança no mundo que globalizava também ideias e tendências, em Portugal o antigo e consolidado Partido Comunista Português, o PCP, resistiu conservando seu nome que em breve será centenário, recaldeado pela clandestinidade longa a que esteve sujeito.
Esta dissolução das linhas divisórias das ideias que vinham do 1918, transformaram, com um pouco mais de fôlego, todo o quadro que se conhecia, esfarelando a esquerda, desacreditando a direita e outros mais ao centro que não conseguiram promover soluções para os problemas sociais e muito do que postulavam perdia-se no vazio da implementação incongruente e da pouca convicção de valores, que a esquerda queria manter mais límpidos, e que a avassaladora presença ditatorial dos mercados econômicos relegava para o plano dos boas intenções. (Diferentemente do conto de Machado de Assis a dissolução das linhas divisórias não permitiu a solidificação do 'status quo ante', mas sim o descrédito de todos os envolvidos.)
Tudo foi num crescendo, de crise em crise, onde alguns embolsavam quantias inimagináveis para o cidadão comum, criando milionários em número dissonante com o número muitas vezes exponenciado dos pobres que as mesmas situações geravam, e de bilionários com números mais perversos ainda, até que o descrédito foi se avolumando para todos os envolvidos, sobretudo para os políticos, jogando os eleitores nos braços de correntes populistas, quase sempre colocadas nas estremas do quadro ideológico, o que não exclui o populismo simples, dos que fazem uso dele sem base ideológica nenhuma, só visando iludir o grande número de susceptíveis a este canto de sereia, porque já não têm mais nada para acreditar. E neste impasse nos encontramos presentemente.
Agora espera-se que vá ocorrer uma dispersão cada vez mais intensa e resoluta dos votos que se concentravam naqueles antigos partidos preferenciais, que compunham o que em Portugal usa-se chamar do arco da governação, uma tolice designativa como outra qualquer, partidos que se vão esvaziando a pouco e pouco por falta de credulidade, e criando inesperadas surpresas eleitorais a cada eleição que se realiza, pela vontade de se buscar algo diferente. Os exemplos italiano e francês são os mais visíveis. Entre esta dispersão que ocorre, algo se concentra nos comunistas por toda parte.
Suponhamos que, após mais algumas eleições, os comunistas atinjam um volume de votos que lhes proporcione uma representatividade tal que lhes permita estabelecer governo, estaríamos na outra face da medalha, teríamos revertido a situação, invertido as expectativas, e seriam de se esperar soluções que atendam a razão subjacente que os terá levado a esta votação: o desejo de soluções para a manutenção do estado social e as conquistas deste, e, evidentemente, da classe operária. A desculpa de que o sistema comunista só traz soluções com a implantação da sua plenitude (ou seja o pleno sistema comunista com um só partido) não mais procede, porque onde esteve implantado com todo o poder, desmontou-se e caiu tão fragorosamente, que creio nunca voltará, tão ensurdecidos ficaram os que ouviram de perto. Hoje o comunismo tem de viver dentro das regras democráticas, nada mais de partido único, convivendo com a alternância e com regras e normas constitucionais que não se alterarão por mais numerosos que cheguem a ser. Logo, entre as responsabilidades que terão de assumir, está a de formarem governo em coligação com outro(s) partido(s), não se escusando ao jogo democrático para o qual sejam eleitos, uma vez que o postularam ao candidatarem-se.
É claro que a maneira mais simples de evitar isto é fazer imposições programáticas prévias, que digam ao eleitorado que se eximem nestas e tais circunstâncias, permitindo-lhes continuar em seu isolamento, é bem o que estamos verificando na atual conjuntura. Poderá esta situação permanecer? Poderão os comunistas afastarem a possibilidade de participarem do jogo democrático indefinidamente? Abandonarão esta linha, até agora estrutural, de serem um partido de oposição, e aceitarão ser um partido de governo? Ou momento chegará em que o eleitorado lhes sinalizará que, ausentes, sozinhos, sem participarem, não cumprem as expectativas dos que lhes sufragaram, recusando-lhes, portanto, o voto? O jogo político sempre continua, ou a gênese do comunismo o exclue? E no caso português? Haverá diferenças?
Creio que antes do que se imagina, subordinados ao desejo de sobrevivência política, ver-se-á um governo com o PCP. E porque não? Afinal eles não comem criancinhas.
Creio que antes do que se imagina, subordinados ao desejo de sobrevivência política, ver-se-á um governo com o PCP. E porque não? Afinal eles não comem criancinhas.
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